Foi hoje que fui caçado.
Foi uma rigorosa investigação jornalística da RTIG. Na linha das grandes reportagens de há vinte e cinco anos atrás, quando era uma televisão ao serviço do partido - o CCP, pois claro.
Lá se vai o anonimato.
Não passou de uma exagerada versão dos acontecimentos por parte da vizinhança, a suposta invasão columbina do post anterior.
Ainda que houvesse alguns vestígios de penas entre a janela e as cortinas, não havia espaço para os pombos se instalarem.
Entretanto, ao ler o blogue do Fernando, esse espaço admirável sempre repleto de novidade e de bom gosto, que vejo eu?
Este recorte do jornal O Globo:
E se eu tivesse apanhado os bicharocos em flagrante?
Seria detido? Estaria com TIR a esta hora?
Haveria autópsia aos restos do jantarinho?
É que há um amigo que diz que pombos de rua também se comem.
Pardieiro não parece ter na sua origem o pardal pardo que tanto palra.
Parece que o étimo é pariete > parede. Paredes velhas, telhas soltas, rebocos caídos, madeiras desencaixadas, pardais lá dentro. Vem dar ao mesmo.
Há muito que percebi que a casa de cada um é onde habita.
Isto de termos a ideia de que controlamos algo mais do que as paredes onde nos inscrevemos, é mera ilusão. Para mim, é.
Apesar disso, ainda chamo meus a alguns pardieiros espalhados entre os chaparros.
Talvez pudessem ser um sonho neo-rústico de qualquer ave presa em galinheiros de betão. Não o são para mim. São ruínas.
Mas desta vez não se trata de pardais. Melhor dizendo, não se tratará só de pardais.
Nem se trata de montes caídos onde às vezes encontro cadáveres de aves que julgava desaparecidas daquelas bandas.
Trata-se de um galinheiro de tijolo e cimento. Betão tem pouco. Uma casa de onde me retirei sem me retirar. Onde deixei o meu espólio, as minhas memórias, e de onde, mais uma vez, fui o último a sair.
Lá ficou o que ninguém quer roubar. Livros, papéis, fotografias. Roupas, objectos constituídos em amostras sem valor. Sem valor para outrem. Móveis. Pratos e talheres. O bastante para quem é frugal. Como eu.
Mas retirei-me.
Recebi agora a notícia. Os pombos - livres ou escravos - ocuparam-me o espaço. Alguma janela mal fechada deu-lhes abrigo.
O que farão eles com as minhas memórias?
Mais um pardieiro na cidade.
Perdão, pombal.
É da natureza humana. Pelo menos assim parece.
Mesmo que se duvide que os nossos mais remotos antepassados tivessem tempo e oportunidade para se deterem com inutilidades. Em algum tempo elas terão entrado na vida dos homens para não mais saírem. Por enquanto.
É certo que o conceito de inutilidade não é muito seguro. Mas sobre isso falarei noutra altura.
Esta de hoje, que me tem consumido algum tempo, é tão bizarra como todas as outras que não sabemos para que servem. É apenas mais uma.
Saído da crise de processamento a que o velho Pentium me submeteu, lembrei-me de um jogo que não conseguia correr nem que a vaca tossisse e que sempre me agradou - o tal que dá pelo nome de Scrabble.
Pois lá encontrei uma versão utilizável e pus-me a jogar contra o algoritmo. Sucedia que o dicionário do bicho era obviamente inglês. E, apesar das bizarrias que encontrava no dicionário, cedo verifiquei que não era adversário para quem tantas palavras conhecia.
Foi então que me decidi por jogar em casa, isto é a construir um dicionário português adaptável à coisa. As exigências são simples - só valem palavras até doze letras e nada de acentos ou cedilhas.
É claro que há o problema da quantidade de KK, WW e YY que aparecem no jogo. Mas isso é de somenos. O busílis foi e é construir o tal dicionário.
A minha versão do Word não tem dicionário português. Já tive um mas foi para o maneta. Também não sei do dicionário que construí ao longo dos tempos, o tal de Custom Dic. Foi para as urtigas, também.
Socorri-me enfim desta página, que é subsidiária do Jornal de Notícias. Reúne palavras encontradas na versão electrónica.
É claro que contém muitos estrangeirismos, gralhas, hifenações de fim de linha, etc. Mas aproveitou-se. O Word nisso é bom. Transforma num ápice vogais acentuadas em vogais átonas. Tira as cedilhas aos cês. O Excel elimina as palavras com mais de doze letras. Mas o dicionário continua pobre.
Foi então que me lembrei de um utilitário que fiz para ajudar um estrangeiro a aprender as nossas flexões verbais. Lá se introduz o nome do verbo (regular, pois claro) e se obtêm todas as flexões. Nada de mais.
Agora fiz outro. Como o dicionário quer tudo ordenadinho alfabeticamente, é preciso não só obter as flexões verbais como ordená-las assim. Já agora incluiram-se os advérbios e adjectivos relacionados.
Se isto não é inutilidade, então o que é?
Já consigo ganhar ao moço.
Os WW e os KK? Valem KW, OK, KO, GW, entre outros.
Passam hoje trinta e sete anos sobre a última grande catástrofe natural ocorrida em Portugal Continental.
Na parte continental do país, salvo algum esquecimento, há a registar durante todo o século XX três dessas catástrofes, por terem sido muito mais mortíferas do que todas as outras:
23 de Abril de 1909 - o sismo de Benavente
15 de Fevereiro de 1941 - o ciclone que assolou todo o país
25 de Novembro de 1967 - a tempestade que desabou sobre Lisboa e zonas limítrofes
Nos Açores, houve entretanto diversos episódios mortíferos, todos eles causados pela actividade sísmica.
Para além destas, associadas aos ditos elementos naturais, há que não esquecer a epidemia mundial que dizimou milhares de portugueses no final da primeira guerra.
E é hoje que voltam as notícias sobre o eventual perigo de uma nova catástrofe. Mundial. De contornos semelhantes a essa.
Já aqui tinha discorrido sobre essa eventualidade, que é tão certa como a ocorrência de novo terramoto em Portugal. Só não se sabe quando cai sobre nós.
E sobre a dificuldade de combater hoje uma pandemia.
Pela facilidade e velocidade de propagação.
Sobretudo pela instalada mentalidade do politicamente correcto, pouco dada a perceber necessidades radicais face a problemas de dimensão catastrófica.
A Natureza dá-nos lições periódicas. Quase parece que o faz quando nos esquecemos que fazemos parte dela.
Esperemos que não seja desta.
Comprei hoje o Almanaque Borda d'Água. Não sei quantas vezes o terei feito. Poucas, decerto. Algumas delas nos velhos serões da Cervejaria Trindade. Há muitos séculos.
Pois o Reportório útil a toda a gente foi durante muitos anos, ainda antes dos tais séculos, uma longínqua referência que eu ouvia de velhos e que associava a uma espécie de oráculo que circulasse pelos caminhos do Alentejo, debitando sentenças sobre ventos, águas, sementes e calmarias. Mas não era isso.
De todos os dados dele constantes, o que sempre me fez espécie foi a antecipação das ditas calmarias, do fresco, do limpo, do tempo revolto, da chuva.
Confesso que nunca aferi tais premonições. Aferi outras, mais talhadas pelo atavismo, que estas não sei se o são.
Ouvi ditos sobre semanas de nortada, dias de levante, geadas e águas. Moles e rijas.
De quase todos se adivinha uma certa capacidade para se alinharem com a estatística. Mesmo quando ainda se percebem erros de palmatória, talvez amplificados pela reprodução oral.
Mas esta certeza a um ano ou mais de vista, tem que se lhe diga.
Em 2005, vou estar atento.
O eclipse de 3 de Outubro, esse sim, conto caçá-lo lá para Trás-os-Montes.
imagem em http://tubes.ominix.com/art/holiday/valentine/ (link perdido)
Passei muitos e bons anos da vida ao lado do velho amigo R.C..
Entre as suas qualidades conta-se uma inevitável queda por tudo quanto mexa e use saias.
Queda essa que eu partilho, embora com modéstia quanto ao sucesso.
Sofri na pele os caprichos do homem.
Como da vez em que cheguei derrotado a Saragoça, morto de sono, e tive mesmo assim de completar a viagem até Barcelona, porque o homem, em vez de estar preparado para me substituir ao volante, tinha deixado que as musas o inebriassem e estava impróprio para prosseguir viagem a menos que fosse de pendura.
Actuámos em palcos dessas espanhas.
Jantámos em inglês em tocos de árvores da capital francesa, irrepreensívelmente ataviados, apenas para acirrar os passantes contra os moços do outro lado do canal.
Corremos Ceca e Meca e o vale de Santarém, metendo copos, mulheres e trabalhos, muitos trabalhos pelo meio.
Mas naquele dia, tratava-se apenas de um insuspeita incursão aos Algarves d'aquém-mar.
Coisa outonal.
A paragem para o pequeno-almoço foi na costa transtagana. Em casa de família.
E aí apareceu a Filipa.
Que nem um nem outro conhecíamos.
A Filipa era mais corpo. Pernas e busto. Uma cara daquelas de lavar como a roupa branca.
Mas disse uma coisa que jamais seria esquecida.
Foi quando mencionou aquele acidente numa estrada com dois sentidos.
No dia seguinte, pela manhã, ao entrar no escritório, reparei no mapa das obras.
Entre os pins verdes, vermelhos e azuis, havia um coração. Verde.
Estava espetado na costa alentejana.
P.S. Este post foi influenciado pela gentil deferência do amigo Santos Passos por MCV às 23:01 de 21 novembro 2004
21, é claro
A pergunta era a habitual: A quantos estamos hoje?
Ao dar a resposta acima, de forma automática, mais não fiz do que usar o cognome de vinte e um, coisa que muitos de nós faz em virtude de atavismos vários, de deixas apreendidas por aí, talvez em salas de loto clandestinas dos tradicionais clubes de bairro:
22, dois patinhos.
69, para cima e para baixo.
11, o número da cabeça.
90, nas ventas.
Mas o 21 não vem daí.
É história lendária de cujos contornos sei apenas o essencial.
Era de Inverno e fazia-se serão à roda do lume.
Os de casa e uns quantos de fora.
Foi quando um surto de espirros sacudiu a conversa. Uma das visitas desfazia-se em acenos de cabeça convulsivos e sonoros.
Perante a cena, calaram-se as vozes.
Quando o acesso terminou, perdurava ainda um silêncio pré-hilário.
Coube ao paciente, dar a deixa: "Vinte e um, é claro!"
Nunca se soube da regularidade contabilística de tais acessos. Mas a convicção com que as palavras foram proferidas não fez só desprender o riso. Deixou muita gente à espera de outra ocasião para os contar. Creio que nunca aconteceu.