Há feira na minha terra. Suponho que entre hoje e terça-feira.
As raízes perdidas são coisas que doem.
Os dois séculos da minha vida teimaram em ganhar fronteiras bem definidas, com erro de somenos importância.
O séc.XX foi o meu tempo das origens, rústico, repleto de conhecenças, onde os demais me chamavam pelo nome.
O XXI é esta difusa coisa urbana, anónima, como está?
Sempre fui bicho-do-mato. Amante dos silêncios povoados, recluso de porta aberta, onde a praça estivesse sempre à mão.
Algures no virar do século, perdi o pé.
Deixei de ver o porto onde fazia a cárrega.
Navego sem conhecenças, não diviso o rosto de outros marinheiros.
Por isso, hoje não atravessarei as ruas entre plásticos e barros, entre vergas e carrosséis.
Não ficarei à mesa para o frango com pó.
Ninguém me chamará pelo nome.
Naquela linha de cavalo e égua, muitos anos andei enganado com a suposta concubinagem entre atum e cavala.
Se ninguém me disse que eram géneros diferentes da mesma espécie, também ninguém me convenceu depois do contrário.
Deve ter havido um dia em que acordei e decidi colocar a cavala a salvo das investidas do atum.
Que era o meu preferido.
Mas havia ainda outros casos. Carapau e sardinha não eram bem o mesmo, nem faziam par.
Mas era como se fizessem.
É claro que era uma espécie de clubite gastronómica. Um Sporting-Benfica, um Simone-Madalena das coisas de comer.
E eu sempre fui mais pelo carapau até ao tal dia em que decidi trocá-lo de repente pela sardinha.
Menos borrego e mais cabrito. Mais perdiz e menos pombo. Menos lebre e mais coelho. Mais galinha e menos peru. Por aí.
Havia também os pêros e as maçãs. Definitivamente pelas maçãs. A laranja e o ananás, pelo ananás.
Hoje, graças à negação dessas dicotomias ou não, meto o dente em qualquer um. Já não vou por sons, por palavras, por supostos géneros. Até por cores.
Também não vou pela embalagem. Lembram-se todos da fase da fruta bonita. O freguês come com os olhos. Tudo a saber a nada. Pão sem sal.
Tenho saudades da fruta do Cercal, de São Luís, e lá da horta do monte da minha bisavó.
Lá na minha, já quase não há árvores de fruto. Abençoadas as poucas figueiras que restam.
Como vêem, começo a falar de alhos e acabo em bugalhos, outra dicotomia.
Nada batia certo.
Nem os alçados com os cortes, nem as plantas com as perspectivas nem a bota com a perdigota.
Isso foi culpa do ACAD.
Qual ACAD? Isto foi feito à unha, num programazinho do século passado, tipo régua, esquadro e compasso.
Mas atão?
Atão... nada. Deu-me para isto. Porque é que as coisas haveriam de bater certo? E a expressão artística? Queres limitar-me? Queres submeter-me a regras ultrapassadas em que tudo tem que bater certinho?
Ainda me divido entre os calendários agrícola e civil. Mesmo que as ligações ao campo se limitem hoje a presenças espaçadas.
E, por isso, vejo os anos terminarem na época balnear. Quando ela existe.
Quando não acontece, a sensação é a de emendar anos em anos, sem que 31 de Dezembro seja mais do que fim de mês.
Poucos anos passei sem molhar os pés. Mas neste século, só uma vez mergulhei nas águas do Atlântico. Com muita pena minha.
Estou portanto quase em ano seguido desde o verão de 2000.
Em que não tive férias.
Mas todos os dias, quase todos os dias, levantava voo dos complexos industriais da margem sul com destino a uma das minhas praias de infância.
Fui Carlos mais uma vez. Mas por poucos dias, já que a senhoria desta vez acabou por entrar com o meu nome.
Sr. Manuel, já não lhe chamo Carlos. Mas alugou a casa e agora não a aproveita?
Não lhe consegui explicar que sim, que a aproveitava.
Que aproveitava a casa, a praia, as ruas em calçada, as casas velhas, os cafés, a noite.
Que aproveitava as viagens, a auto-estrada, a estrada nacional, o calor alentejano e as melodias que me acompanhavam no banco do Toyota e do Honda. Que encontrei nessas viagens alguns companheiros, cavalheiros da estrada. Aqueles com quem fazemos uma viagem, ora atrás, ora à frente, como dois ciclistas em fuga. Sem picanços, com muita cortesia e ajuda nas ultrapassagens.
Que aproveitava o regresso, às vezes com a neblina das manhãs, o café recém-aberto, a estrada, a auto-estrada, Paio Pires, Barreiro.
Ver os monstros industriais. Assistir à demolição triste de quarteirões fabris. Fotografar esses mundos de cabeça.
Conseguir viver em férias, em fim-de-ano, a trabalhar.
Meter prego e estopa em campo minado é leviandade. Mas apetece-me hoje entrar por caminhos ínvios mais uma vez.
A primeira questão que se levanta logo é definir o intelectual. O que é um intelectual?
Em tempos, dei a minha definição a um velho amigo com o qual partilhei o número suficiente de viagens de carro para termos tempo para muita conversa fiada.
Não ficou muito de acordo. Deu a dele.
Estou convencido de que hoje, se fosse caso disso, ainda trocaríamos longos argumentos sem resultado nenhum.
O que nos levaria para outro campo, o da discussão. A isso irei em outra altura.
Não estou convencido de que a definição que apresentei nesse dia seja melhor do que todas as outras. Mas estou convencido de que é um conceito suficientemente vago para ser visto e carimbado de muitas formas.
Como todos ou quase todos os conceitos que não são matemáticos.
Talvez que eu me refira a um subconjunto mal definido desse conjunto difuso de cujos elementos se diz que são intelectuais.
É isso com toda a certeza. Uma vez que qualquer conjunto é subconjunto de si próprio.
Adiante.
Há em grande parte das análises e dos comentários políticos uma base de erro que me espanta.
Essa base, passe a redundância, é partir do princípio que as coisas, a sociedade, os homens, o seu comportamento, são racionais.
Nada mais errado.
Todas as construções que se fazem com essa base, são inevitavelmente instáveis. Para não dizer outra coisa.
O que me leva sempre a imaginar o que seria a condução de uma sociedade entregue a tais cabeças.
Devo dizer que considero, não sei se erradamente, que o bom político não pode ser um homem de horizontes muito largos. Mas se o é, tem que os ter tão largos que isso lhe permita ser capaz de os encurtar.
Tudo isto que acabei de dizer tem tanta razão ou tão pouca que nem sei onde me inclua.
Se no grupo dos políticos, se no dos intelectuais, se no dos presumidos, se no dos irrefutavelmente ignorantes.
Como é que se podem dizer coisas sem pretender racionalizar ou ser artista?
O carro não tem travões!
Não tem, pai? Mas ainda agora funcionavam.
Não tem. Não me vês a carregar no pedal?
Caramba! Vá bombeando! Será a bomba que se foi?
Não sei, só sei que não trava.
Bolas.
Arre! Nada. Nem resistência tem o pedal.
Vai bater no Civic.
Chiça!
Então... mas tu não vês em que pedal é que eu estava a carregar?
Qual?
Neste, no da embraiagem. Tinha o pé esquerdo encostado ao pedal do mija-mija. Troquei os pedais.
Ah ah ah! E eu nem sequer me lembrei de puxar o travão de mão...
Nem eu. O que é que me dizes disto?
Digo que tal pai, tal filho. Fazer o quê? Sabe de quem é o Civic?
Não. Ainda por cima, deve ser de alguma visita. E novinho em folha.
Ó Zé, sabes de quem é o Civic preto que está lá fora?
O Civic preto? Porquê? O que é que aconteceu?
Eh pá, uma das minhas. Vinha com o carro desligado, lá de cima da oficina, e em vez de carregar no travão, vinha com o pé na embraiagem...
E bateste? Bateste no carro da minha mulher? Logo hoje que lhe pedi para o trazer, porque tenho o meu na oficina...
E é novo, ainda não o tinha visto.
Novo? Fui buscá-lo esta semana!
Foi só o farol...
(o meu pai conduziu durante décadas sem nunca ter tido um acidente, apesar de nefelibata)
Reparo hoje que a minha última referência ao futebol, descontando o post anterior parece datar do último Benfica – Sporting, a 4 de Janeiro. Há uma outra a propósito dias depois, nada mais.
Falava então dos seis milhões de benfiquistas, esses alegados 60% que agora dormem mais descansados.
Faço esta concessão naquela linha tradicional do contra. O Sporting perdeu, não se fala de futebol. Pois eu falo. Já que falo tão pouco de bola, lá vai.
Disse uns dias depois no tal outro e último post que o campeonato estava arrumado desde o dia em que o Sporting ganhou ao Leiria, a 20 de Dezembro. À 15ª jornada. Ou seja, de acordo com umas tabelas que me mostraram, nos últimos não-sei-quantos anos, nenhuma equipa recuperara a distância, da 15ª jornada até ao final, para o primeiro que se verificava então (considerando a percentagem de pontos obtidos sobre os possíveis).
Pois é, nesse dia o Sporting ganhou e ficou fora da carroça. Pelo que os números ditavam.
Hoje, aconteceu o que se temia. Principalmente para aqueles que fazem contas ao dinheiro, lá se vai a hipótese de reduzir o défice.
Em algum lado da história, o futebol deixou de ser aquela coisa de clube, camisola, facção e passou a ser negócio, empresa, rendimento, mas um negócio piramidal, ruinoso e pouco empresarial. Nunca me empolguei muito com futebóis. Nesta coisa de bola, só tenho saudades é do muda aos cinco e acaba aos dez, em que fazia a minha perninha. Futebol é jogar à bola, não é ficar a ver os outros jogar. Mas sabe-se lá como, numa esquina qualquer, vi-me sportinguista. E lá tinha as minhas discussões com o empregado da pastelaria, fervoroso benfiquista, que ainda deve estar a recuperar da tareia que lhe dei quando o Lourenço (o outro Lourenço) marcou quatro na Luz (a outra Luz).
Esta minha filiação clubística é um mistério. Nunca percebi na minha família a não ser já com os meus cabelos brancos qual era o clube de cada um. E tive as minhas surpresas. Já aqui falei disso também.
As coisas hoje estão longe desse tempo em que me colocava dentro do balcão da pastelaria para melhor alvejar o meu adversário do alto dos meus sete anos.
O futebol é hoje uma necessidade ainda maior. Basta olhar para as falanges ululantes e pensar o que seria se não tivessem aquele escape para a energia (estúpida?) que acumulam.
Basta ouvir as discussões acaloradas e facciosas para perceber que, se não houvesse a bola, aquela verve incendiária cairia sobre coisas bem mais importantes, e de forma certamente desastrosa.
Ainda se lembram do “ópio do povo”?
Dito isto, acrescentar apenas que continua a tornar-se imperativo fazer o tal escrutínio para saber qual é o erro dos 6.000.000
E outra coisa, isto muito sinceramente, se calhar é melhor que vá o Benfica à Liga dos Campeões. Sempre costuma fazer melhor figura.
Como é que é possível que eu tenha falado tanto de bola?
Ah, e vi o jogo. Há muitas luas que não via um jogo de futebol de fio a pavio. Estou a ficar velho, deve ser isso.