Um dia inesquecível. por MCV às 17:02 de 24 novembro 2006
À segunda levantou voo o franchisável (III)
Não posso precisar os detalhes da nossa chegada ao aeroclube. Mas uma coisa pode dizer-se e é certa: se fomos em meio aéreo, fizémo-lo com as rodas assentes no chão, taxiando. Já à chegada, notava-se que o irrepreensível estado de limpeza da aeronave do meu amigo contrastava com o estado de sujeira em que se encontravam quase todas as demais. Como se o simples facto de andar no ar concorresse para o acumular de merda nas asas, na carlinga e em toda a fuselagem, enfim. Mas depois de ziguezaguearmos pela frente e pela ré da reluzente máquina, agora exibindo o seu azul celeste ao lado da roulotte dos coiratos e das sandes de molho, e de eu ter medido bem os gestos e a pose do meu companheiro que em tudo se esforçava por estabelecer, sem a menor dúvida, o linque de posse entre ele próprio e o avião, enfrentámos as bancadas tribunícias onde algum público assistia à evolução de aparelhos e talvez até se despedisse de parentes e amigos embarcadiços. Isto depois de um pequeno incidente de que fui protagonista, quando entrei numa área reservada e tirei algumas fotografias. Ele fazia-me gestos com a mão para que não avançasse mais e me abstivesse de fotografar, com medo de qualquer admoestação na sua qualidade de membro do aeroclube. Eu lá continuei mais um bocado mas acabei por retroceder, sem que alguém me tenha interceptado. Foi entre a minha saída do portão gradeado da dita área e a chegada à bancada coberta, passando por uma ponte sobre um fosso na muralha que avistei, saltando de um baluarte, o franchisado. E digo ainda que era o franchisado, por calcular que o detentor da originalidade de tão grande malícia em tão pequeno corpo não tivesse tido tempo de ali chegar, mesmo que se tivesse apressado a seguir no meu encalço. Era pois o diabo por ele. Um franchisado. Fosse lá quem fosse, começou de imediato a arremessar-nos pedras assim que nos apanhou a tiro. Nem sequer o facto de nos encontrarmos já então em animada conversação com duas companheiras de bancada foi impeditivo da sua maldade. Distribuía-se entre as pedradas que ora acertavam em nós ora em terceiros e as investidas com paus afiados e as vergastadas com canas verdes. Acabámos por fazer uma retirada estratégica para a sala de espera, envidraçada, que ficava no topo da bancada e na qual havia uma abertura larga a oeste, do lado da pista de onde levantavam agora os aviões. As nossas amigas tinham-nos acompanhado. E havia indignação maioritária entre a assistência contra o renegado infante, embora uma minoria achasse que a criança não merecia censura alguma. Foi depois de mais uma investida pela tal abertura ocidental, que a coisa se deu. E deu-se rapidamente e da seguinte forma: O miúdo investira com uma lança de madeira pontiaguda contra o J.M.. Este, num salto felino, apanhou-o pelo cu das calças e saindo com ele para a parte da bancada, arremessou-o contra os cabos de alta tensão enfeitados com balões vermelhos. O miúdo chamuscou-se e fez ricochete, ao som do trovão. Foi parar de novo às mãos do J.M.. Este não hesitou e arremessou-o uma segunda vez, com tais ganas que me pareceu a mim que ele também tinha sofrido na pele as agressões do primeiro. E que era o franchisável, ele próprio, que levantava voo. Talvez não me tivesse enganado. À segunda foi de vez. O ricochete que fez agora, deveu-se apenas à elasticidade dos cabos, já mortos. Já morto ele também, com o choque da primeira vez.
A minha visão do 22 de Novembro de há 43 anos, obtida em cima do acontecimento. por MCV às 23:31 de 22 novembro 2006
Política há
Ideias é que não. Há muito que é assim. A última ideia política de que dei conta - condicionada pelas circunstâncias da época - foi a da integração europeia. Daí para cá, um deserto. Um deserto em que só os que se encontram dentro das clientelas encontram diferenças de rumo. Como se houvesse até um rumo. Dá este governo, na linha que vinha embora mais ténue de outros anteriores, uma ideia de querer pôr a casa em ordem, o que é dizer tino nas contas. Faz bem. Faz muito bem. E é por isso que as costumeiras corporações já se queixam. Como se isto não dissesse respeito a todos. Não tenho, como já disse, pachorra para ouvir as lamúrias e os queixumes de tais corporações quase sempre representadas por inenarráveis criaturas bradando por tenças, alcavalas, comedorias e acrescentamentos. Há, porém, uma brecha grave pela qual podem acometer os protestantes - é a falta de autoridade moral dos governos, da qual é ridículo exemplo a publicação a rogo e a contragosto da lista de credores do Estado. Como disse, no deserto não há ideias. Nem rumo que se possa mudar. Mas há muitos pobrezinhos deslumbrados, convencidos de que vão não sei onde, com a arca que carrega o nosso dinheiro. Pobres de espírito. por MCV às 20:51
A mulher que não gostava de ser comentada encontrou-se, no dizer de Godard, com o homem que não gostava de ser lincado. Foi ali naquela esquina e não chegaram a dar um pelo outro. Como daquela vez em Bariloche. por MCV às 22:29 de 21 novembro 2006
Sei lá eu por que é que, no meio de tanta pressa, havia de me deter naquela sala. Mas detive-me o suficiente para reparar neste e naquele, no inevitável dr. azul acinzentado e nesta ou naquela figura feminina de fino recorte. Uma delas era portadora de uma criança amável e comportada que se encontrava sob ataque de uma outra, desbragada, quezilenta e maliciosa. A coisa descambou quando esta acertou aquela com um troço de pau de vassoura, deixando-a desmaiada. Os pais do agressor encolhiam os ombros. E a até ali morna atmosfera, toldou-se duma vez. Comentários reprovadores do dr. azul acizentado, como é que esta gentinha educa os filhos, e outros reparos sobre a gravidade do galo. Embrenhava-me eu em discurso mudo sobre os eventos junto de um homólogo quando fui acometido pelo pequeno malfeitor, que me acertava com o mesmíssimo pau de vassoura nas pernas. Dirigi um olhar fulminante à mãe da criança, certo de que nada adiantaria, e retirei-me, lembrado da urgência da abalada. Foi então que já não vi nem o meu irmão nem o J.R.. Procurei o carro, de ribeira abaixo, seja lá o que fôr que isto significa, a par de ser a descer a rua, e nada. Meti por uns atalhos sob o caminho-de-ferro, era daqueles viadutos com os encontros revestidos com silhares, e lá encontrei alguém que me deu indicações muito pouco preciosas. Desisti do comboio para voltar para casa e voltei à procura do carro, ribeira acima. Avistei-o mais ou menos a meio caminho. Vinha com ar de quem não quer a coisa mas era certo que já me tinha escolhido como vítima, mesmo porque não se via vivalma a mais por ali. Acertou-me primeiro com uma pequena pedra. Depois com um punhado de areia que me atirou aos olhos. Logo com uma pedra maior. Ainda encaixei mais sete ou oito ataques, ignorando-os como se nada fosse, até alcançar de novo o pórtico das instalações. O pequeno meliante tinha ficado para trás. Julguei infrutífero travar conversa com a mãe dele que se encontrava sentada no mesmo sítio, em amena cavaqueira com a parceira do lado. Saí de novo e de novo fui atacado com paus e pedras. A um certo ponto reagi, dando uma valente bofetada na cara do bandidote. Este retomou o ataque com fúria redobrada, como seria de esperar. Para evitar exceder-me com ele, resolvi entrar pelos tais corredores de vidro e utilizar o truque de mudar de nível, calculando que, pela sua reduzida estatura, não lhe seria possível agarrar a barra que possibilitava o balanço. Assim fiz e vi-me ao pé do velho J.M. a quem não via há uns bons tempos. Estranhei o facto de o ver envergando um dólman de piloto e respectivos cachecol e óculos. Sossegou-me. Era apenas o traje de aeroclube.
Duas notas, para mim curiosas, a propósito da publicidade televisiva. O anúncio do Montepio cortou a parte do convite para jantar. O anúncio do Ponto Verde manteve a frase "Co' a breca [...] não lembra ao careca!" O politicamente correcto não se aplica às criancinhas, tá visto. Para a próxima ousarão "...mariquinhas pé-de-salsa", "... do que um coxo", "... o zarolho", "... para o maneta" ? por MCV às 21:56 de 19 novembro 2006
Furacões
Parece-me muito pouco próprio que esta época de furacões tenha sido tão fraquinha. Coitados dos mensageiros da desgraça. por MCV às 18:28
Filhos e penteados
Ainda não consegui perceber por que é que não teremos nós, todos os portugueses, direito a um emprego vitalício e respectiva tença, com valorização anual nominal positiva e valorizações extraordinárias garantidas a intervalos regulares. É a tal parábola dos filhos e dos penteados. E eu cada vez tenho menos pachorra para ouvir e para pagar estas cobóiadas corporativas. Eu e mais quantos? por MCV às 18:27