Então não foi? Uma guerra dos diabos!
J. olhava em volta e interrogava-se: de quantos sítios te podes tu gabar de conheceres tal e qual como estão hoje, há mais de vinte anos?
O dono da casa nem precisava de pedidos. Servia sempre de acordo com as memórias.
Volta e meia, assegurava-se: Falta alguma coisa?
Foi ou não foi uma guerra? Tás a ver?
Mostrava-lhe uma mensagem SMS que incluía uns cumprimentos para o J.
Da Finlândia, dizia ele com ar triste.
Assim ficaram, tarde adentro, comendo e bebendo.
Foi uma guerra.
Chegou e disse.
Repara bem nas repetições das imagens do penalty.
Agora diz-me se és capaz, se alguém é capaz de dizer que é ou que não é.
Mas repara bem que há milhões a vociferar. Quase todos ao lado da equipa pela qual torcem. É certo que há uns quantos que tomam o partido contrário. Uma minoria. Mas não penses que são melhores, também eles estão plenamente convencidos do que viram.
E tu?
Eu? Eu não gosto de futebol.
Enganas-te com outras coisas...
Saiu e tinha dito.
Vamos dizer mais mal de ti ou de mim?
Dos dois, pá. Sem personalizar.
Mas tu é que te ajoelhaste aos pés do pai dela.
Mas pensava que era ela que vinha à porta.
Enganos. Mas ponho o quê? Os teus amigos?
Sim. Os teus amigos são insuportáveis, qualquer coisa assim.
O.K.. Achas que a letra tá boa assim?
Tá. Achas que ele vai olhar muito para a letra? É letra de gaja e chega.
Então, ele mordeu o isco?
Não te disse nada?
Não.
A mim disse-me. Disse-me que não percebia nada daquilo.
Então?
Ó pá, não percebia nada daquilo. Quem é que teria escrito a carta a ela. Acho que ele pensa que foste tu!
Pensa?
Se não pensasse, tinha-te dito. Ele pensa que foste tu e está admirado por ela ter respondido.
Quer dizer que vem esperá-la ao comboio?
Vem. Deve estar a aparecer.
Devíamos ter ficado do lado de lá.
Pois é. Mas onde é que a gente se escondia?
Eh pá, não nos escondíamos. Ficávamos ali ao pé da cancela e aparecíamos como quem não quer a coisa.
Aí é que ele desconfiava logo.
Achas que sim? Assim também não vemos a cara deles...
É agora! Apostamos?
Que ele falou com ela? Pois falou. Então para que é que viria esperá-la?
Olha! Olha-me bem para aquilo!
Eu não acredito! Ela está a ler a carta!
Ele não te disse nada?
Não.
Então é porque pensa que foste tu. Mas também acha que fui eu.
Então?
Disse-me seus cabrões, foram vocês. Mas depois disse-me que não percebia porque era mesmo a letra dela, frases dela...
E engatou-a?
Não sei. Acho que sim.
É o resto. Agora só depois do Natal. Já viu nos outros lados que eu lhe disse?
Já. Em Portimão, não há loja de ferragens em que não eu tenha já comprado o stock.
Vá a Faro.
Naquele dia, São Pedro estava zangado com os algarvios.
Seguiu para Lagos, decidido a bater o Algarve de lés a lés. Não podia era voltar de mãos a abanar.
A caminho do Alvor, à porta de uma oficina, um grupo de homens parecia divertir-se com as possibilidades de negócio que um enorme lençol de água mesmo em frente à porta, lhes oferecia.
Até Lagos, a fustigação não parou.
De casa em casa, feito um pinto, fez o pleno de não temos.
Até Faro, experimentou os poucos depósitos de materiais de construção que lhe faltavam. Chapéu.
Ooops, lá se vai o outdoor. Parou para tentar arrastá-lo para fora da faixa de rodagem, mas ainda bem que apareceu a BT. Nem saiu do carro.
Horas de almoço à entrada da cidade. Chuva em barda.
Entrou no grande centro comercial que lhe permitia estacionar mais ou menos ao abrigo.
Saiu com um atado de livros em saldo.
Tal como em Portimão e em Lagos, verificou a amável cooperação corporativa do comércio especializado: Já foi a tal sítio?
Como dizem os discípulos de La Palisse, foi no último que encontrou.
Já estava a tomar as coordenadas de Olhão e Tavira, quando ouviu o velhote: Quantos quer?
M 16? Tem varão M 16?
O homem ria-se. Será que o senhor quer assim tantos varões?
Levo tudo.
Ainda hoje se gaba de ter esgotado o varão M 16 no Algarve no último Natal do século XX.
Lembro-lhe que foi só entre Lagos e Faro.
Replica ele que, a acreditar no que lhe disseram, não valia a pena procurar a Sotavento.
Em São Brás de Alportel foram registados 124 mm nesse dia. 7,75 varões M16 em cima uns dos outros.
Elaborar uma mentira de 1 de Abril que tenha tanto sucesso como a célebre praga (ou nuvem) de pirilampos não seria muito difícil.
Apesar da generalizada descrença, há sempre pontos fracos que se podem explorar.
Com a dependência informativa de telejornais, rádios e imprensa propriamente dita levada a níveis nunca antes experimentados, uma concordância entre estes num terreno propício a logros, levaria decerto a resultados surpreendentes.
Num plano diferente, e guardadas as distâncias, tomemos o exemplo da onda gigante que se aproximava da costa algarvia naquele dia de Agosto de 1999.
Independentemente da justeza da decisão das autoridades de mandar evacuar as zonas costeiras, há que reter que a inverosimilhança do fenómeno (ainda que possível) não deixou de influenciar multidões, ao que me disseram e ao que se viu e ouviu nos noticiários da época.
Talvez que a data de 1 de Abril já seja demasiado óbvia para pôr em campo um dispositivo de engano. Mas que precisávamos de um estímulo parvo qualquer que nos animasse e nos fizesse sorrir, nem que fosse o sorriso amarelo do desengano, não tenho grandes dúvidas.
Como nos clássicos e nos menos clássicos (espero um dia vir a entender o critério de atribuição da clássica qualidade), apareceu-me aqui na secretária uma resma de folhas dactilografadas a espaço e meio.
O autor, é claro, é dado em parte incerta.
O portador foi de poucas falas, apenas disse que era mais velho do que o prédio onde encontrou o maço de folhas. Não percebi o significado das suas palavras, confesso.
São folhas A4, folhas de carta modelo americano, folhas quadriculadas arrancadas a cadernos comprados ao velho Carvalhosa e outras de duvidoso formato.
O tipo é de dois tipos. Temos uma Adler do início do século passado e uma Messa dos anos setenta.
O que lá está escrito, só Deus sabe.
Surpresas boas quando o calor tarda em convidar à praia.
Pensar que há dois anos, os primeiros dias de Março foram balneares...
Ah, estão depositadas num arquivador diário da Eril, com a referência 502/80. E parecem mais do que uma resma. É tudo.
Fato domingueiro Um post de domingo, à segunda-feira
Estamos descrentes. Não é com o governo, não é com a oposição, não é com o futebol, não é com o país, é connosco.
A um ateu e agnóstico (há quem defenda que estas duas qualidades não convivem) não há sublime crença que lhe valha. É o meu caso.
Mas não considero que esteja a subsumir a partir do que sinto. Olho em volta e vejo o mesmo. Poderei estar equivocado, é uma forte possibilidade. Mas parto do princípio de que não estou.
E então, porquê?
Porquê esta descrença e este aparente fastio?
Só tem fastio quem está de barriga cheia – dizem há muito alguns.
Mas o fastio por ora fica de parte, vamos à descrença.
Alguns dirão que a queda dos deuses e dos medos é a responsável por ela.
O temer a Deus já não faz parte do vocabulário. Mesmo para os crentes.
O mundo ocidental caracteriza-se hoje pela ausência do medo. Adiante (mas não aqui) se verá se ele regressa ou não. O meu palpite é que não. Pelo menos, a médio prazo e salvo circunstâncias extraordinárias como a ocorrência de pestes ou a previsão de cataclismos de dimensão muito superior aos conhecidos.
Não há medo, não há temor, não há novidade.
E não há sonho.
Grande parte dos povos que constituem a sociedade ocidental vive numa estabilidade sem meta. Os sonhos são os que todos sabem, as coisinhas do costume.
A própria sociedade deixou de prosseguir grandes objectivos. Se é que alguma vez o fez. Mas ao conferir a grande parte dos seus elementos um certo bem-estar, deixou de ter visão prospectiva. Empenhou-se essencialmente numa maior unificação. Talvez levando o carro à frente dos bois.
Ao conseguir um certo bem-estar, a maioria da população anseia por mais qualquer coisa, sem saber o quê.
Ao atingir determinados patamares de conhecimento e de intimidade com os senhores, perdeu o medo, fez comparações e viu esfumar-se o sonho.
Apercebeu-se de que não há uma glória em ser isto ou em ser aquilo.
As próprias metas de descoberta que poderiam potenciar novos sonhos, estão pouco visíveis.
O racionalismo tropeçou na falta de dados e na dificuldade de os tratar, à medida que a precisão exigia mais.
E somos atacados pelos bárbaros, pelos novos bárbaros.
Não creio que estes, por ora, possam causar maior dano.
Mas estou convencido de que vivem num patamar onde os temores e as crenças são caldos que proporcionam o sonho e a vontade.
A vontade deles será acabar com a nossa civilização. Sem saberem muito bem como e porquê. Mas alimentam esse desidério.
Continuo ainda convencido de que o nosso maior inimigo é o sonho. A ausência dele.
Já ninguém veste um fato domingueiro.