De que é que depende a memória colectiva de um povo?
Partindo do princípio simplificado que a memória colectiva é o conjunto de factos e de conceitos que constam da memória da grande parte das pessoas, quer por experiência quer por comunicação, como é que ela se estreita e se alarga?
Não será muito difícil adivinhar que na memória colectiva dos portugueses, até à unificação do último século, com a rede escolar, as comunicações e outros factores como os jornais, a rádio e a televisão, não haveria muita coisa.
Episódios verdadeiramente nacionais como pestes, guerras e sismos seriam a essência dessa memória. Perdida muitas vezes no tempo, que nem sempre a tradição oral tudo transporta.
Se falarmos apenas nas últimas décadas, e descontarmos os conhecimentos escolares, o que é que fica?
Acho que fica pouco mais do que o que passou na televisão.
Julgo não ser necessário ter amplo e fundamentado conhecimento para aqui chegar.
E se isto é verdade, a nossa memória enquanto povo será desta vez filtrada pelas câmaras. Só os factos que merecem (quem decide isso, é outra história) ser transformados na sua tele-imagem ficarão nessas gavetas.
Será que a multiplicação de imagens de acontecimentos conduz ao aumento proporcional dessa memória?
Ou eles acabam por substituir-se nas gavetas e apenas restarão meia-dúzia deles?
O que mais me intriga nisto é apenas uma questão, que até se pode dizer não é de memória colectiva nacional, é de memória tout court:
Tendo eu privado de perto com grande número de pessoas, das mais diversas idades, dos mais diversos graus de instrução, mas tendo em comum a rusticidade, apercebi-me sempre da sua relação com a memória (regional, local, da natureza) ser pautada pela noção de que o mundo não havia começado ontem, nem no dia em que nasceram.
E hoje, cada vez mais, se assiste ao apagar dessa base. A maioria das pessoas acha que o mundo é coisa nova, o conceito mais presente é o da novidade.
Que as televisões o façam, é esperado. Vivem do espalhafato que promovem. Mas se elas marcam assim tanto, a ser verdade o que disse acima, a memória colectiva, não restarão grandes dúvidas de que a surpresa será o pão nosso de cada dia. por MCV às 18:08 de 13 março 2004
Basta ya
Quando ouço estas palavras, tragicamente repetidas ao longo de anos, interrogo-me sempre sobre o destinatário e a sua utilidade.
... quando entrou uma mulher velha que vinha ao avio.
O homem mais perto da porta desafiou-a de chofre: "Ó ti' Ana, diga lá o que é que manda mais!"
Ela não se demorou com a resposta, pegando no ponto: "O que é que manda mais? É a força!"
...
Podia ter sido qualquer de nós, hoje em Madrid, ontem em Nova Iorque, anteontem em Belgrado, em Sarajevo, em Paris, em Bolonha, em Telavive, em Bagdade, em Istambul, em Moscovo, em Beirute, em qualquer lado, vítima de bomba, de míssil, de bala, de energia libertada.
David e Golias repetem-se de forma cada vez mais sangrenta.
Ou a energia que continuamente se acumula e se liberta, matando tudo à volta.
É provável que seja cada vez pior.
Hoje falei de actualidades, mas esta história não tem nada de novo.
O diálogo acima presenciei-o numa taberna da serra alentejana. Lapidar, a meu ver.
Em itálico porque reproduz um post antigo.
Há coisas que me desinquietam.
Quando se juntam duas ou mais paixões no mesmo prato, está o caldo entornado.
Então o amigo Almariado não tratou de me pôr água na boca, de uma forma que é um autêntico convite à perdição?
Fala-nos de petiscos, de serra algarvia, do barrocal.
Arre porra, que é difícil resistir.
Eu que sou um velho amante daquelas paragens, um caso perdido em se tratando de bons manjares, fico-me à nora ao ler aqueles posts (1 e 2).
Mesmo sabendo da proliferação destas iniciativas um pouco por todo o lado, a magia do Algarve mais remoto é algo de muito forte. E os petiscos muito bons.
Li no Expresso que a RTP vai fazer a eleição dos dez mais, à semelhança do que se tem feito noutros países.
Os dez mais serão os dez portugueses mais importantes (ou mais famosos?) de sempre. Não sei bem se é uma coisa se é outra, porque fama e proveito como sabemos são bem distintos, mas confundem-se.
Estranhei que a notícia falasse de um acordo com a BBC.
Acordo porquê?
Terá a BBC os direitos sobre todas as ideias do género?
Será a RTP incapaz de fazer tal eleição sem recorrer a espertos das mais diversas origens?
Pois não sei, mas faz-me sempre lembrar a velha máxima funcional: "Não se inventa nada!"
Agora o resultado vai ser decerto curioso.
Alguém votará em Fernão de Magalhães, Fernando de Bulhões, Pedro Nunes ou Pedro Julião?
Modificaram-se muito desde que me recordo de as empreender, no banco de trás.
Já não são uma aventura.
E isto não tem a ver necessariamente com a infância e os seus mitos. Para os adultos também o eram.
Ficaram muitos episódios na minha memória.
Do encontro imprevisto com a praga de gafanhotos (quem se lembra hoje que tivemos uma nos anos 60?), das estradas que se finavam debaixo de água no vale de Santarém, dos incêndios e das tempestades atravessadas, às inúmeras explorações de estradas em perspectiva, atravessamento de barrancos, atasqueiros, paisagens remotas, ficou um mundo de impressões ainda hoje presentes.
As viagens hoje são uma maçada com destino.
Pouca gente atenta aos percursos. O que lhes interessa é chegar depressa. Auto-estradas, áreas de serviço, pouco mais se conhece.
Uma viagem é o seu destino.
Há pouco quem ande por aí sem destino certo, ao sabor de sinais, de marcas na paisagem.
Não sou antropólogo, sociólogo ou possuo qualquer qualificação que me permita tecer grandes considerações sobre o actual estado do conhecimento nessas áreas.
Dito isto, refirir-me-ei apenas a uma certa tendência mais ou menos evidente no discurso político e social que podemos ouvir todos os dias.
Não se sabe desde quando, mas o homem assumiu a dada altura a sua diferenciação no mundo animal.
E passou o tempo todo desde essa altura a imaginar-se mais do que um animal.
Lá terá as suas razões.
Mas seria de supor que, com o actual estado da ciência, nomeadamente com o conhecimento das últimas décadas sobre alguns dos mecanismos sensoriais, que nos voltássemos a encarar como animais.
Mas não é isso que no discurso corrente e corriqueiro acontece.
Dir-se-á que a política tem como último objecto o esquecimento desse facto.
É provável que sim.
A minha questão aqui é só uma:
Serão os conhecimentos científicos decisivos para a organização social? Ou ela é demasiado complexa para poder ser compreendida e enquadrada, de forma a aperfeiçoar-se com o conhecimento?
Bem sei que não há sistemas perfeitos. E que os mais cientifizados deram bota.
Até há alguns anos, 7 de Março não tinha significado especial.
Quem não fosse imune a televisão, saberia que é o aniversário das emissões regulares.
Sem que fosse sempre a 7, existiu durante alguns anos a coincidência entre a data do Festival da Canção e a noite de Sintra do rali de Portugal.
Não teriam relação nenhuma as duas coisas se não fosse o caso de durante a preparação da nossa escalada da serra, sermos confrontados ainda na vila, com os televisores a debitarem as últimas ocorrências festivaleiras.
Lá mais para o final, no meio da excitação dos carros e das meninas, havia um sempre que fazia a pergunta em voz alta: "Quem terá ganho o festival?"
Essa pergunta ecoou durante anos na minha memória, por ser inusitada e irrelevante face às circunstâncias. Ninguém sabia ou queria saber.
Foi substituída por outras igualmente irrelevantes e inusitadas em outras circunstâncias.
Mas ficou.
A partir do ano em que o rali ficou moribundo, a data passou a ter um significado pessoal.
Não por essa razão, mas por outra.
E o certo é que merecia comemoração. E a pérfida pergunta surgia sempre na altura mais inoportuna.
De tal sorte, que fosse ou não dia de festival, era um excelente bálsamo para o que queiram imaginar.