Ou como se mostra que um mau militar perde todas as batalhas. Claro que há desculpas. A minha antagonista levava-me quatro anos de avanço. O certo é que em sábado algum de Aleluia lhe levei a melhor. Até a última vez que nos decidimos a fazer um contrato, muitos anos depois, fui apanhado a escanhoar-me. Como vêem... Mas no meio dos inúmeros Waterloos, há um em que a derrota foi mais estrondosa. Nesse dia decidira-me por uma colocação altaneira, de forma a divisar todos os movimentos do inimigo. Do terraço do meu tio via os dois largos, quase todos os troços das ruas circundantes por onde poderia haver movimentos hostis e ainda o quintal da minha bisavó, de onde suspeitava vir a ser desferido o ataque. O erro estúpido foi obviamente o da visibilidade. E ter desprezado o sistema de informações do outro lado. Já cantava vitória ao ver as horas a passar e nem sinal de movimentos contrários. Mas era um empate de xadrez. Havia que traçar um plano B. E desalojar o inimigo das trincheiras. As simulações de retirada que fizera de nada tinham servido. Por certo nalgum campanário longínquo alguém fazia sinais, dando conta das minhas manobras. O problema de abandonar a posição era ter que, por breves minutos, perder o controlo visual. O risco de uma manobra inimiga nessa fase era algum. Decidi-me. Desci as íngremes escadas de um fôlego. Abri a porta lateral com todos os cuidados. Costa livre. Dobrei a primeira das esquinas que me separavam da exposição às baterias. Nada. O muro altíssimo que defendia o quartel-general das tropas inimigas estava agora à minha direita. Não acreditava que houvesse uma posição descoberta do outro lado do muro. Avancei. Nada. Dobrei o ângulo agudo na esquina do largo e já, de cuidados redobrados, resolvi-me a adentrar, disparando em todos as direcções, a toca do lobo. Assim o fiz. Nada. A minha bisavó recebeu-me com um sorriso trocista. Estava a dominar as trincheiras inimigas e nem sinal de vitória. Nada a fazer. Retrocedi e, a passos calculados, dobrei as mesmas esquinas. Decidi-me a prosseguir para o meu próprio QG. Havia várias portas a considerar. Usei a principal, pensando que essa era a melhor hipótese. Nada. Relaxei. O tiro ouviu-se nessa altura: Oferece!
sobre imagem do SNIG
Este jogo consistia numa celebração de contrato: "Contrato, contrato, contrato fazemos. Sábado de Aleluia ofereceremos!" e numa combinação sobre o seu objecto, normalmente um pacote de amêndoas. No sábado, não valia apanhar o outro a dormir. Era preciso que estivesse já a pé. O primeiro a disparar um "Oferece!" à vista, ganhava.
Esta memória foi há tempos avivada por um post da Sónia no seu Vadiar, que relembrava uma variante insular deste jogo. por MCV às 16:41 de 26 março 2005
Uma Páscoa com ovos
Foi no conforto da leitura matinal do jornal da antevéspera, já com duas ou três chávenas alinhadas na mesa que vi a cara do homem debruçada sobre a necrologia. Sabes a que hora é o comboio para cima? Não posso dizer que não estranhei a pergunta. Era sabido que antes da Páscoa só interessavam os comboios ascendentes*. Olhei à volta, não vi o Manel no seu posto e perguntei-lhe: Já viste se o táxi está aí fora? Pergunta ao homem. Se ele não estiver, é porque está na hora do comboio - foi com esta peça de informação abundante e palisseira que o despachei.
Já era noitinha quando combinámos o poiso para a cartada de depois do jantar. Nestas coisas de cartas, convém sempre uma certa tranquilidade, uma estante com licores e um pratinho de bolachas. Era o que tínhamos. E uma noite quente de Abril. As portas da varanda estavam abertas e o sossego lá fora era propício a vazas peculiares. Quebrou-se o encanto quando a mão estava do lado da brisa que abanava os cortinados. Um pressentimento - disse ela - a minha irmã não apareceu para jantar. Não posso dizer que não tenha somado de imediato dois mais dois, embora estivesse concentrado nas cartas em falta. Foi com algum incómodo que acedemos a uma pausa. Acompanhámos da varanda o percurso breve que ela desenhou na rua. Os gestos que fazia já à porta de casa prenunciavam que eu estava certo. Foi nessa altura que uns faróis surgiram ao fundo da rua. Nessa época não me era difícil identificar o VW do J.C. A perspicácia dele confundiu-me. Sabia que acabava de chegar de Coimbra e que estava figurativamente a leste dos factos. Pois de imediato parou o carro e me perguntou, afirmando: Fugiram, foi? Julgo que a minha resposta, da qual não me recordo palavra por palavra, já mencionava o facto de a garrafeira do anfitrião ter que suportar a despesa do copo d'água. Afinal havia um parentesco próximo.
A comemoração não acabou como é de hábito com a dispersão dos convidados. Acabou quando as convivas, sabendo que eu e o J.C. há muito não nos víamos e que não tínhamos trocado uma palavra fora daquela sala, excepto as três frases que se ouviram da varanda para a rua, se assustaram com o truque de cartas que tão bem combinámos. Caiu decerto a Páscoa sobre os noivos a essa hora. Houve quem tivesse mencionado essa hipótese.
*Os comboios ascendentes são, neste caso, os que seguem para Sul, para baixo. por MCV às 15:12 de 25 março 2005
Conforto
Segue-se o conforto da estupidez. O descanso do passo em falso, afinal. por MCV às 00:25
Εύρηκα!
Quando se descobre algo de transcendente que é, ao mesmo tempo, absurdamente simples, tremem-nos as pernas. É que pode não ser verdade. por MCV às 23:55 de 24 março 2005
Como é que alguém faz prova perante o Estado de que tem capacidade matrimonial? E de que a tem para contrair matrimónio com uma determinada pessoa?
À primeira pergunta, supor-se-ia (claro que fui eu a supôr) que bastaria apresentar um documento válido que comprovasse a idade e o estado civil compatível (todos à excepção de casado) e não ser portador de alguma doença que a lei preveja ser impedimento bastante.
À segunda pergunta, supor-se-ia que bastaria apresentar um documento válido que comprovasse ser o sexo da pessoa com a qual se pretende casar, diferente do da própria. E, sem entrar nos impedimentos próprios do promitente cônjuge, que não fosse parente nos casos previstos na lei. Ah, e ainda fazer prova de não ter jamais sido condenado por homicídio de anterior cônjuge da pessoa com quem pretende contrair matrimónio.
Ora isto supunha eu. Mas não é nada disto. A prova documental de estado civil não é aceite, porque não são suficientes as garantias documentais que um (dado) estado estrangeiro dá nessa matéria. A prova testemunhal é irrelevante, por não ser possível a ninguém no seu perfeito juízo, afirmar sem margem para alguma dúvida que x não é casado. E é-o também, embora as dúvidas aí se reduzam muito, quanto ao parentesco entre ambos. Claro que amostras de ADN podem ser trocadas em laboratório também. Claro que o teste não é 100% sim ou não. Havendo ainda parentescos que inviabilizam o matrimónio e que não são de sangue. Quanto ao homicídio...
Claro que tudo isto acontece em Portugal. No século XXI, Ano da Graça de 2005. por MCV às 10:26
Testes e coincidências
Ligo pouco a testes, quero dizer aos seus resultados. Mas divirto-me às vezes a fazê-los. Logo hoje que, a propósito de uma conversa, veio à baila o velho lema, casado em 2005:
Me saiu isto de uma caixa de correio que não abria há meses:
NOTA IMPORTANTE: Jamais alguém me chamou LELO. Mas num teste daqueles, foi o que me veio à cabeça. por MCV às 22:19 de 23 março 2005
Não obstante a variada referência à cura de águas no Cartaxo, não se conhece um só indivíduo que aí se tenha instalado com esse fim. O que nos promete para um futuro em que historiadores sociais escarafunchem nas fontes para obter líquida informação sobre expressão tantas vezes encontrada. Passando o Cartaxo e o vale de Santarém, apercebo-me agora de que nunca fui um homem de caldas. Jamais tracei rumos para estâncias termais, jamais estagiei à sombra de adegas. Não tendo feito uma coisa e outra, não posso afirmar que não haja casos em que lá andei perto. Se me instalei numas termas, sem cuidar de banhos ou eflúvios minerais, e ainda arrumei na mala da viatura umas caixas com setas para cima e aviso de fragilidade, isso quer dizer exactamente o quê? por MCV às 11:44
O engenheiro das bolachas
O sketch existe. Está gravado em Beta. Numa daquelas noites incompreensíveis em que, de petisco em petisco, acabei em casa do R.C., com a namorada atrás. Só os três, talvez com uns licores caseiros da lavra dele, resolvemos encenar o meu sonho da noite anterior. Tinha morrido o engenheiro das bolachas. Entrevistámos várias pessoas a propósito. A que melhor desempenhou foi o adjunto. De lágrima ao canto do olho, enquanto desfiava os pormenores do horrível acidente de trabalho na prensa das shortcake, dava francas mostras de estar à altura para ocupar o cargo do defunto. O mais estranho de tudo isso é eu ter entrado em cena, quando a moça prestava declarações na pele já não sei se da viúva inconsolável, disfarçado de cidade do Porto. Isso intriga-me. Mas está lá. por MCV às 13:33 de 22 março 2005
Talvez haja poucas pessoas entre os que me lêem que possam sentir o mesmo que eu, dadas as circunstâncias. E as circunstâncias são as de ter vivido mais de quarenta anos, sempre que possível, na terra (pequena) onde nasceram os meus pais e grande parte da minha família. Parece-me que este mundo dos blogues é mais urbano. De pessoas que lidam com outras sem lhes conhecerem a raiz. E é essa proximidade que abandonei há quatro anos que me faz tropeçar em fotos de defuntos e nomes gravados na pedra e recordar de cada um deles um gesto, uma palavra, um petisco, um cantorio. Parece-me que não há ninguém ali a quem eu não tivesse conhecido. Mesmo àqueles que partiram antes da minha chegada, sei-lhes das façanhas. Uma vila ali enterrada a quem às vezes visito.