O massacre dos três JNão se conhecem grandes detalhes da operação. Mas sabe-se que foi um massacre inqualificável. A crer não nas provas que jamais apareceram mas na convicção dos polícias.
Os três J - Joaquim, Jorge e Zé - tê-lo-ão cometido num hospital-convento de Lisboa, a fim de encobrirem, eliminando as testemunhas, um roubo de peças valiosas, entre as quais muitas barras e moedas de ouro.
Sabe-se pouco disso, como disse atrás.
Mas sabe-se que um deles, depois de despir a roupa suja de sangue, e não tendo outra para a substituir, entrou de novo no convento, pela porta lateral da igreja. Aí, atrás de pesadissimos reposteiros e por naves laterais semelhantes a corredores de cinema, onde fumadores aguardavam a segunda parte do filme ou a continuação do velório, lá se foi aventurando.
Acabou por roubar um reposteiro mais pequeno e dele fez traje.
Resolveu-se depois por sair e voltar a entrar. Pela porta ao lado. Do cine-estúdio - catequese.
As catecúmenas lá vinham com os seus livros ao peito. Os matrimónios em preparação mais com folhetos.
Passou por uma leva de retirantes e apanhou os mais temporões do ciclo seguinte. Uma moça solitária e sem rosto perguntou-lhe se ia também para a catequese. Respondeu que não, que ia para velar um conhecido e que mesmo sabendo que as capelas mortuárias ficavam do outro lado, resolvera passar por ali. Ela disse Ah.
Assim que se apanhou numa dependência que se assemelhava a um anfiteatro mínimo com uma janela alta para o jardim, abancou. Pouco depois, chegaram os outros JJ com o saque.
Ali mesmo o catalogaram e avaliaram.
Saídos que foram pela pequena janela do alto, em pouco tempo estavam já no Fiat 600 D a caminho da Avenida.
Aí, naquele trecho da Barata Salgueiro que fica a nascente da Avenida, e no semáforo respectivo, J deu por falta da máquina fotográfica. Como se encontrava ao lado do condutor, espreitou para o porta-luvas e não a viu.
O J que conduzia e o J que estava no banco de trás, saíram lestos do carro e lá foram.
Passada mais de meia-hora, sem que os seus camaradas regressassem, resolveu pôr-se a milhas.
Já convencido de que tinha toda a polícia no encalço, rumou a sul. Por portas e travessas.
E foi assim que chegou a Alcácer do Sal.
Ali em Alcácer, entrou naquela rotunda que dizem existir e onde entroncam a nova e a velha entrada norte.
Já ia com ela fisgada depois de ter afinal encontrado a máquina fotográfica escondida por um mapa.
Lembrava-se da 120, o marco zero ali ao pé do rio. E da 5-1, ramal para a estação.
Foi a pensar pois nelas que parou o Fiat 600 D num larguinho, cá ao cimo da vila. Ou será da cidade?
Não se ficou a saber se havia algo combinado. O certo é que entrou numa casa onde estava J, o do banco de trás.
Este saiu, trazendo uma máquina de filmar das profissionais. Trocaram algumas palavras ininteligíveis e J pousou a câmara numa mesa de pedra, ao pé de um chafariz.
O outro perguntou-lhe se ele deixava ali material tão valioso. Ele respondeu que sim, que ninguém mexia em nada, que afinal até ele, J, tinha deixado as chaves do Fiat 600 D na ignição.
Desceram calmamente pelas ruas de Alcácer em direcção ao rio. Marcos da classe 10k apareciam fora de ordem. E ali, onde havia um pequeno afluente canalizado, entre dois renques, J perguntou se era aquele o rio Lis. J deu um berro - Rio Lis? Aqui em Alcácer do Sal? - e foi pouco depois que se sentiram cercados. Não ofereceram resistência.
Na casa com janelas sobre o dito rio, os polícias vasculhavam os pertences.
Os dois permaneciam calmíssimos.
Mas um dos que estava a vasculhar um portátil, teve uma ideia luminosa. Usar o utilitário que visualiza uma sequência dos últimos écrans.
E lá começou, clicando na seta de
next.
Olhares cruzaram-se. J com J, que do outro J, o dono do carro, não havia notícia.
De repente, o polícia disse - é no CSS, no disco CSS que está a coisa. Mas isso é um DVD. E não está aqui. Temos que o caçar.
J olhou para J de novo. Quase se diria com um sorriso.
Mas talvez não fosse.
Depois de muitos
next e
previous, nada. Foram embora.
J disse a J que era melhor fugirem dali. A qualquer altura dariam com a coisa.
J notou que achava estranho aquelas imagens não terem aparecido. O outro riu-se.
J decidiu sair a pé. Dirigiu-se ao rio.
A certa altura, foi mandado parar por um polícia. Não parou.
Ouviu dizer que o Orlando o faria parar. Caminhou para a beira-rio, para um sítio onde um rochedo complicava a marcha pela margem. Já perto dele viu perfeitamente o círculo da ponta do cano, como se ampliado. Um aviso qualquer fê-lo desviar-se. A bala embateu-lhe no ombro direito.
J também ali estava. Dentro da cerca. Uma cerca de oliveiras onde parecia os iam executar.
J só comentou por que raio não o tinham logo morto. Lembrou-se de que Orlando falhara o tiro. Mas nada o teria impedido de o executar com um outro tiro, já no chão. Não disse mais nada.
Os tiros afinal começaram a seguir. J - o restante J - comandava o grupo. E estavam todos com ele.
Não foi preciso muito para dispersarem os algozes.
Lá se reagruparam e fugiram em direcção a qualquer sítio indefinido.
Mas resolveram os três sujeitar-se a julgamento certos de que nada lhes poderia acontecer.
De facto, no julgamento, as imagens da máquina de picar carne que ainda se conseguiram ver, não foram conclusivas. Não havendo corpos, não havia crime.
J aproveitou para processar o Orlando. Ganhou. E ainda lhe atirou à cara uns impropérios.
Quando começou a sentir o nervoso miudinho e as movimentações dos polícias à porta do Tribunal, foi saindo de fininho até à estação. Não havia já comboios nesse dia.
Um homem com um ar alucinado pedalava pelos carris numa bicicleta adaptada. J pediu-lhe boleia. Este disse-lhe que não, mas que tinha uma outra bicicleta parecida que lhe poderia ceder. Era um aparelho cujos pedais eram de curso. Uma cambota transformava depois o movimento. E foi, depois de combinar a devolução no balcão de volumes do Rossio, nesse aparelho que se fez à linha. Pelo lado de dentro, oriental, como se assim fosse mais resguardado de atiradores ao longo do rio ou do olhar das sádices. Lembra-se de ter saltado por cima de vigas de pontes metálicas. E de ter aportado à inexistente estação do Torrão. Por ali, desceu da bicicleta e foi dar ao encontro de pedra de uma ponte. Antes disso tinha bebido um café servido por alguém que usava um avental com os dizeres
Gelo triste.
E já não pensava sequer no saque.
por MCV às 13:22 de 28 setembro 2006 