Foi assim, mais ou menos assim, que o país inteiro se riu de si próprio.
E é assim, mais ou menos assim, que o país se queixa de si próprio.
Nada do que é essencial aparece como preocupação primeira. Não me espanta. Talvez assim tenha sido sempre, salvo no caso das grandes catástrofes.
Dos políticos, diz-se que são maus - também eu o digo, quando a mostarda me chega ao nariz e absurdamente almejo que sejam geniais - do povo, diz-se que é boçal. Creio que todos, sem excepção, podemos ser boçais. É tudo uma questão circunstancial. Talvez uns mais do que outros, ok. Mas a verdade é que dificilmente nos suportamos uns aos outros e que isso leva muitas vezes a esses extremos.
Não acho que este país seja pior do que outros. Será mais difícil viver aqui do que em alguns outros lugares, mas é seguramente mais agradável e menos perigoso do que na maior parte do mundo.
Voltando a encarrilar no que queria dizer de início, não me parece que haja grande novidade para nos fazer sentir mais insatisfeitos hoje do que ontem.
O que parece que há, e parece não só aqui mas um pouco por todo o lado, é uma insatisfação generalizada.
Insatisfação essa que não posso dizer de onde vem. Posso especular, conjecturar, apenas isso.
Há anos que digo aos que têm a paciência de me ouvir, que a Natureza (melhor dizendo, o Tempo) se encarregará de nos pôr no sítio. Seja pela guerra, pela peste ou por outra qualquer forma de que ela se lembre. Como se ela o não fizesse diariamente.
Esta insatisfação pode muito bem vir do excesso de segurança. Da vertigem do risco. Guerras aqui e acolá, em pequena escala, não foram o bastante para aplacar os ânimos.
É preciso mais tensão e mais energia libertada.
Andamos todos assim.
Qualquer zanga de comadres parece (se deseja que seja) uma catástrofe. Mas não é.
A memória, porque sendo provavelmente hoje mais dilatada para os lados, para as milhentas coisas a que se presta atenção diariamente, deixa de se alongar no tempo, precisando por isso de ser avivada a espaços.
Confesso que fiquei com alguma expectativa com o anúncio do canal em que a RTP se propõe emitir peças dos seus arquivos.
Embora a coisa permaneça meio confusa, não se sabendo quando e em que sintonia se pode ver o dito canal.
Mas, assim de repente, gostava de rever:
Os documentários de Michel Giacometti e Alfredo Tropa
Os documentários de Hélder Mendes
Os documentários de Lagoa Henriques
Os separadores das várias séries que se fizeram com imagens do país - quem não se lembra de terem colocado um sobre São Bento da Porta Aberta, enquanto se aguardava o discurso presidencial que anunciaria a dissolução do parlamento?
O futuro, porque sendo previsível em certos aspectos que não dependem da espécie humana, fica sujeito à atenção de poucos.
É o caso do eclipse solar que ocorrerá daqui a aproximadamente um ano e do qual quase se não ouve ou lê notícia.
Se as condições atmosféricas o permitirem, será com toda a certeza um espectáculo único.
Já aqui postei enigmaticamente há quase um ano sobre isso.
E se nada de irreversível me acontecer antes, conto estar lá para os lados de Miranda do Douro, na manhã de 3 de Outubro do ano que vem.
O homem ia para casa, depois de um dia de trabalho.
Acabara de atravessar a passadeira quando começou a ouvir os insultos.
Estacou. Eram cinco em cada carro, com cara de poucos amigos.
Quando saiu o primeiro, do carro da frente, desviou-se para não ser abalroado.
Em três tempos, sentiu uma mão a agarrar-lhe o garganhol.
Dobrou as pernas e balbuciou: "Eu não..."
Os demais circunstantes apreciavam a cena. Ninguém se apercebera de que ele era alheio à refrega.
Abriu a boca de espanto quando o seu algoz, desmanchando-se a rir, perguntava aos demais contendores: "Mas quem é este gajo?"
Já não foi capaz de se indignar, como os restantes espectadores, quando se aperceberam da farsa.
Ainda levou um palmada nas costas e um desculpe lá, mas o ruído das buzinas, até aí caladas de suspense, não o deixava perceber fosse o que fosse.
Os dez entraram para os carros, e ele julgou ter notado que alguns entraram para o carro errado.
A história repete-se. Desta vez, logo à quinta jornada.
Será que os números nos pregam a partida? Eu cá não acredito.
O tipo das estatísticas é um chato.
Eu bem disse que as recordações podiam ser bizarras.
Ora era o tempo das Peugeot 504 cinzentas, aquelas de 7 lugares.
E era a época dos frios.
E era na estação de Beja, no largo da estação.
E a hora era a de aguardar que abrisse um café.
E a companhia era boa, muito boa.
E o rádio estava ligado, ah estava.
Foi exactamente assim que se ouviu, num daqueles programas para a gente da terra, o Marco Paulo a cantar "Mulher Sentimental".
Caramba. Logo o som havia de ficar na fita.
Falhou a rua que conduzia à casa.
Quando finalmente a descortinámos, na noite invernosa, via-se o muro alto da quinta e a casa envolta em escuridão.
Lá dentro, estava tudo na mesma. Como vinte e cinco anos antes, talvez trinta.
Sobre um aparador, revistas Flama e Plateia.
O frigorífico, de linhas abauladas, estava estranhamente a funcionar.
Lá dentro, uma tijela de caldo verde. Apenas isso.
O vinho novo, na adega, todo ele intragável, datava da mesma época. Novo de trinta anos.
E digo novo, porque tal como na casa, parecia improvável que os anos tivessem passado ali também.
Quando saímos, no dia seguinte, tive receio de deixar ali algo que fosse actual. Uma beata de cigarro dos anos 90 esquecida em algum cinzeiro, uma beata que fosse, seria carga a mais para aquele tempo.
Já aqui falei dessa minha inaptidão.
Que não é a única.
Há quem ache que é estúpido alguém gabar-se da sua inaptidão para a matemática, para o desenho, para trabalhos manuais, etc.
Não sei se gabar é o verbo correcto. Embora haja casos em que parece isso mesmo.
Não me gabo, tão pouco me importa se parece estupidez ou não.
Mas é o que constato. Sou uma nulidade no campo da música. Com toda a certeza.
Por isso mesmo, a tal tarefa a que me propus, de reunir trechos musicais, canções que tivessem em alguma altura da minha vida sido o fundo das circunstâncias, não é uma tarefa fácil.
Claro que só é possível hoje dadas as facilidades de pesquisa que a rede nos proporciona.
Um verso, basta um verso de uma canção e apanha-se o fio à meada.
Já no caso da música sem voz, a coisa é muito mais intrincada.
Depois, depois de reunir um número considerável de peças, de as ouvir com alguma atenção, fica um certo espanto.
O espanto de como certas coisas quase inaudíveis se perpetuaram na memória.
E o espanto de imagens se formarem a partir de notas musicais, roufenhas ou claras como a água.
De atravessar a ilha pela estrada da Encumeada, e em São Vicente, virar à esquerda para Porto Moniz.
E aí, com a tarde a fechar-se, aproveitar a invernia e beber um copo de vinho seco numa taberna escura. Sem palavras.