A análise consensual é aquela que se baseia no que se considera ser a opinião da maioria.
Nunca se sabendo efectivamente qual é a opinião da maioria, salvo quando expressa e mesmo assim com todas as reservas sobre a coincidência entre o pensamento e a sua expressão.
Mas a análise consensual é fortemente contaminadora.
Num primeiro estádio, é tudo menos análise e muito menos consensual, é mais um estado de espírito que se começa a transmitir.
Depois propaga-se rapidamente e quase desemboca em certeza absoluta.
Mesmo os sinais contrários a essa certeza, são facilmente assimilados.
A diferença de atitudes entre os protagonistas dos programas de rádio do tipo forum, nocturnos e diurnos, lembra-me aquela estação ferroviária que às cinco e meia da manhã tem gente que assobia e às oito tem gente de trombas.
Ela deixou atrás de si um rasto verde que o confundiu.
Da seguinte vez que a viu
Quis levá-la dali para um encanto qualquer.
E docemente tomá-la mulher.
Num cavalo, como ela quereria
Ou num tapete voador como pertence à euforia.
Todos nós temos umas quantas fotos de desconhecidos.
Seja num grupo, seja numa foto oferecida daquelas a que chamam de passe, lá estão os estranhos a olhar para nós, sem nos conseguirem dizer que parentesco, que amizade, que cumplicidade tiveram com os nossos antepassados.
Às vezes dá-me vontade de colocar aqui uma ou outra (tenho mesmo muitas) na esperança de que alguém os identifique.
Depois, a consciência. Será legítimo fazê-lo? Não quererão eles que os deixem os paz?
O drama dos dirigentes políticos é não saberem se o povo é estúpido, assim tão estúpido ou nem por isso.
O drama dos eleitores é não saberem se os políticos (todos os políticos) são estúpidos, assim tão estúpidos ou nem por isso.
Nunca lerei todos os livros que reuni.
De herança, os mais de entre eles. Comprados, muitos.
Houve um no entanto que não herdei nem mais o vi.
E é desse que sinto a falta.
Comprá-lo não posso. Não existe. Não está referenciado em catálogo algum.
Só existe na minha memória e porventura na posse de poucos, muito poucos mais.
Decerto esquecido em sótãos ou em segundas filas de estantes recônditas.
Poucos, muito poucos se lembrarão dele.
Talvez o tenham desprezado como eu um dia.
Talvez não se lhes tenha aguçado a curiosidade ao ponto de o quererem perceber.
Não o compraram com toda a certeza. Foi-lhes oferecido tal como o exemplar que conheci.
Para que é que alguém quer um livro que apresenta uma teoria há muitos séculos comprovadamente errada?
Ninguém se apraz com erros grosseiros.
E os que gostam de os analisar não souberam da sua existência.
Um livro ao nada. Nunca existiu.
Senão na minha memória.
Mas com o livro, outras memórias.
Todas as memórias do mundo, de mosaicos hidráulicos desenhando um padrão, de mesas à sombra entre flores, de vinhos variados em tardes estivais.
De uma tardinha, um encontro fatal.
De ver franqueada a porta de todos os dias por um vulto juvenil encadeante e logo ali sentir o perfume que descia sobre as coisas.
Das batalhas inevitáveis que travámos com o resultado previsível, o esquecimento. Como o livro que se guardava de nós (de mim) entre as paredes iniciais, nos esquecemos (me esqueci).
Nem se fale já da viagem estonteante no verão de ananases por rectas derretidas onde as cobras se confundiam com ondas de calor.
Nem se mencione a louca noite em que as dunas nos alijaram a queda fatal ou a desvairada procissão de febre que desenhámos a eito e à revelia dos demais.
Sequer a jornada ao local secreto, a que poucos, muito poucos se atreviam então.
Não há nada para recordar senão o livro.
Nunca o li de fio a pavio, era só aquela inquietação no título, e o folhear desesperado à procura do erro fatal. Com a pressa dos anos pueris.
E só eu sei onde ele ficou.
Provavelmente não soubeste sequer que ele existia, apesar de estar sempre ali à mão.
Não o imagino nas tuas mãos de menina.
Vê-se agora que de nada me esqueci.
O livro talvez ainda lá esteja, entre gente que não faz a menor ideia do que possui.
Foi amor à primeira vista. Já sabia que me era destinado, só não o tinha visto.
Aquela amostra de cão que encontrei empoleirada no banco do carro, esticando-se para o volante, ia ser o meu cão.
Tinha que se chamar Militão.
O rapaz que eu não conhecia, mas parecia entender de cães e que estava ali para ensinar cães e donos, perguntou-me porquê.
Eu respondi que não sabia. Era apenas porque me tinha vindo à cabeça.
No dia seguinte, a notícia. Revoltante e trágica.
O cão foi rebaptizado, contra a minha vontade. Uma triste e não menos curiosa coincidência, argumentava eu, já em dificuldade.
Ainda hoje, o tal rapaz deve pensar que eu sabia muito mais do que disse naquela tarde.
O nome que escolhi para a cadela, meses depois, foi bem aceite.
Morreu com sete meses.
Para a que veio depois, não adiantei nenhum palpite em tempo útil. Mais tarde, sugeri um nome português, ao ver a cadela baptizada com nome de bolacha americana.
Mas vejo agora que essa opção se revelaria também tragicamente premonitória.
Nunca mais baptizo nenhum cão.
Ser rústico é uma qualidade ou um defeito.
O rústico é autocrata. O urbano democrata.
As opções de côr que o meu avô tomava incidiam praticamente todas sobre as barras da casa.
Conheci-as amarelas, azuis, vermelhas, ocres, verdes, cinzentas. Isso no tempo em que o Alentejo e o Algarve não estavam normalizados, em que havia montes vermelhos, amarelos e barras de todas as cores.
Nunca o vi levar em consideração quaisquer critérios que não a sua vontade ou a da minha avó.
Hoje, Alentejo e Algarve estão normalizados e muito piores.
E por aqui, abriu a campanha eleitoral.
Já há quem tenha iniciado a propaganda.
Que não pode haver entendimento entre os verdes e os vermelhos, é o que me dizem.
Eu olho para o boletim de voto e para as opções e não espero influências de última hora.
Vou votar no verde.
Estamos a escolher a côr da porta do elevador.