À segunda levantou voo o franchisável (IV)
Depois de um período de confusão, em que houve de tudo como compete em casos tais de homicídio, estabeleceu-se a discórdia. Os dois partidos, pró e contra o infanticídio acabado de perpetrar, digladiavam-se em plena bancada enquanto eu e o J.M. nos colocávamos numa pose de desafio, prontos a enfrentar todas as consequências que, de facto, achávamos que fossem nenhumas.
Ora pouco depois, chegaram uns estranhos veículos séculos XXII, também eles azuis, também eles voando com as rodas em terra, que eu reconheci como da G.N.R.. Disse então ao J.M. que o melhor era a gente pirar-se.
Recuámos para um corredor interior, passámos por vários gabinetes envidraçados, julgo mesmo que, ao passarmos de nível, nos cruzámos com o J.R. que estava ali para se despedir do meu irmão que afinal embarcara a horas e, nisto, perdi-os a ambos.
Resolvi ir para o fim da pista e usar todo o combustível mental que me restava para levantar voo. Assim o fiz.
Mas a energia era pouca e tendia a diminuir rapidamente. Ao fim de pouco tempo, já voava baixinho entre portas e travessas, até que cheguei à costa.
Ali, rumei a sul. E pouco depois encontrei aquela exploração russa de peixes não-sei-quê. Foi ali mesmo que pedi asilo político, depois de contar sete versões sete do que tinha acontecido.
Uma coisa que me surpreendeu e me fez desconfiar das boas intenções dos russos, foi o terem-me mostrado como estabilizavam as formas de vida que pretendiam preservar para memória futura, melhor dizendo para tempos de mais e melhores conhecimentos científicos.
O depósito era uma espécie de grande estante SUC em plástico cinzento e rede metálica.
Ali havia de tudo como na botica. E receei ir ocupar uma das gavetas vazias.
Mas não. Chamaram as autoridades locais e fui informado que, encontrando-me eu à guarda deles, russos, havia uma negociação tendo em vista esconder-me num alçapão sob a câmara dos comuns em Londres e que isso seria um passo para ser eu trocado por quaisquer prisioneiros de guerra em qualquer zona remota que não vinha bem ao caso.
Isto colocava-me, colocou-me, na directa dependência de uma coligação anglo-russa. E, acto contínuo, fui a julgamento por cumplicidade na morte do artista. Tive a meu lado, à esquerda, uma fila de defensores britânicos; e à direita, igual fila de russos. Deste caso, e das ameaças verbais que ouvi da boca dos pais da criança, não há muito a dizer. Abandonei a sala, pela porta que dava para o mar e mergulhei.
Cheguei de novo a terra firme umas horas depois.
O paradoxo está aqui: se eu de nada me lembrava quando saí das águas, como é que fui capaz de relatar agora os sucessos desta forma?
Diende.
por MCV às 21:33 de 27 novembro 2006 
As cheias de 67Lembro-me do Sábado todo a chover. Da água entrar por frestas de janelas mais expostas.
De ser chuva forte e de ouvir qualquer coisa ao meu Pai sobre a inevitabilidade de haver inundações.
É disso que me lembro e de nada mais.
Não tivemos consciência da gravidade da coisa, vivendo como vivíamos num sítio alto e inclinado, onde a água escoava rapidamente.
Na manhã de Domingo, 39 anos contados até hoje, lá saí com o meu Pai, ambos ainda alheados das consequências da chuva intensa e persistente da véspera.
É a um certo ponto do trajecto que, olhando para longe, para o local ilustrado na foto abaixo, diviso uma série de lençóis brancos alinhados. Nada disse. Mas recordo-me de me ter parecido que o meu Pai, nefelibata que era, não tinha dado por tal. Acho que só quando passámos por um magote de atiçados comentadores da desgraça, que apontavam para o monte e para o vale, ele se deu conta. Mas também nada disse.
Só mais tarde tivemos noção do que realmente acontecera.
Nesse dia a precipitação no Tojal foi de 137mm e em Sacavém, de 111mm.
Dos
registos do INAG, é o segundo mais elevado. Só batido pelo de 19 de Novembro de 1983 (163,7mm e 130,9mm, respectivamente).
Hoje, caem 15 ou 20mm e é o alarido que se sabe.
Fotografia de Paulo Guedes in Arquivo Fotográfico da C.M.L.
Queluz, c. 1900 Foto esta que, por uma estranha coincidência, encontrei ontem no blogue do amigo
Bic Laranja, notando que o aspecto que mostra é muito semelhante ao de 1967.
P.S. Sugiro que se elabore uma fórmula, com base nos períodos de retorno, que dê enquadramento às indemnizações que o Estado paga a quem se queixa de ter bens destruídos por inundações. É um roubo de igreja que alguém, cuja casa se inunda todos os anos pares, venha reclamar do Estado uma compensação.
por MCV às 03:37 de 26 novembro 2006 