Uma não visão política ou um desabafo em si bemol maior
A minha cabeça não dá para mais. E não é imodéstia (modéstia a mais...), é assim mesmo.
Algures lá para trás, fiquei preso nas malhas do racionalismo. Que todos sabemos é coisa duvidosa também. Mas ainda assim tem-me servido de boa bengala. E parece que ao mundo também...
E quando me detenho na política, sendo que nunca sofri da juvenil quimera de querer salvar o mundo, começo a patinar.
Não são só os protagonistas. É a coisa em si. Que na mesma altura, no mesmo lugar, à mesma ocorrência, chama nomes diferentes e dela extrai impossíveis resultados.
Tomar partido, sim. Tenho-o feito. Mas não vejo nisso nenhuma razão sublime. Nenhum argumento imbatível. Apenas o facto de me encontrar num lugar e numa hora confrontado com uma escolha. Apenas isso. E escolho.
E nenhuma paciência para argumentos que não são nem coerentes nem conduzem, não podem conduzir, à esperada sentença.
Reino da subjectividade tacanha que sacode uns factos e guinda outros factos às alturas.
Que idolatra espantalhos.
Que espreme a parte da ciência que julga mais lhe servir.
Que constrói ideias sem estrutura.
Que não entende conceitos como o de convenção, rigor, estatística, escala e erro. Fazendo de tudo uma sopa bolorenta e intragável.
Não tenho pachorra. Ponto.
O que é que as gerações futuras acharão de verdadeiramente imperdoável nos nossos actos e omissões?
Conseguirão separar aqueles dos quais nos damos conta dos que nos passam completamente despercebidos?
Ainda perderão tempo com isso ou aceitarão que o tempo é isso mesmo?
Já não me recordo de onde recolhia a horas tão maduras.
Lembro-me bem da figura esbelta e empertigada que me mandava parar.
Pisca da direita, berma, ervas. Os faróis davam brilho às formas femininas, ali a metro e meio, coisa assim.
A rapariga assim fardada esboçou um ligeiro esgar de espanto, hesitou e lá me veio interpelar:
"Então queria atropelar-me?" - o sorriso traía-a.
"Eu?"
"Porque é que saiu da via?"
"A senhora não me mandou encostar?"
"Não. Só lhe fiz sinal de parar. O senhor não é aqui da zona?"
"Sou. Porquê?"
"Não sabe que a esta hora cortamos aqui o trânsito alternadamente?"
"Minha senhora, não passo aqui todos os dias. E a esta hora..."
"Pois é. Sabe, isto enquanto não fizerem a rotunda, não se resolve."
Espanto.
As feras iluminadas carregavam a toda a largura da estrada, disputando um lugar dianteiro na primeira chicane.
A rapariga assim fardada sorria: "Está a ver?"
"Estou. Não me parece é que a rotunda resolva a questão. Não vejo como."
"Pois é. Mas ao menos, andam mais devagar."
"Lá isso andam."
Quando ela me mandou seguir, hesitei. Era mais fazer-lhe companhia e pagar-lhe um café.
Mas dei-lhe um sonoro (mavioso?) bom-dia.
Ela riu-se outra vez.
Estava um frio de rachar.
Sempre foi para mim um mistério e um encanto.
Aqueles locais que reconhecemos só em sonhos. Em vão tentamos conciliar a sua morfologia com o mundo que realmente conhecemos. Umas vezes dentro do próprio sonho, outras fora dele.
Um dos mistérios que me acompanhará à tumba é aquela estrada sobre o mar, que de curva em curva me reserva panoramas extraordinários e bem em sonhos conhecidos.
A passagem pelo contorno da baía, a casa que parece uma pousada, à esquerda, no foco da concavidade e uns metros acima do plano da estrada. As pedras que orlam o espelho de água. Mar sempre calmo, verde, azul. Depois a estrada afasta-se do mar e segue para sul.
Há uns tempos atrás, um mapa começou a acompanhar a explicação.
A estrada já não é viável. Vês a interrupção aqui, um pouco à esquerda do número? Erosão costeira, meu caro.
Mas há-de haver uma forma de lá chegar. Até ao local onde a estrada abateu.
Sim, há. Vais até àquele bairro de prédios cor de salmão, à saída da cidade e onde estão umas canas, ao fundo de um terreiro, consegues ver os restos do alcatrão. Atravessas as canas e já a vês.
No meio disto tudo, ou melhor, fora dos sonhos, tento encontrar outras explicações.
Em vão, obviamente.
Apesar de saber que Setúbal é a cidade no extremo norte da estrada. Disso tenho a certeza.
Quando o meu PC deixar de amuar com o software de desenho, acrescentarei aqui o mapa.
O mês e meio de férias estava na recta final.
Depois da tranquilidade do sotavento, a tranquilidade do barlavento algarvio.
Umas férias a três. Um casal e um sofá com rodas e vista panorâmica.
Naquela madrugada de 25 de Agosto, deu-me mais uma vez sede.
Talvez um cigarro na varanda, a contemplar as luzes dos barcos.
Já agora, liga-se o rádio. Quase hora das notícias. Baixinho, para não te acordar.
Não retirei de imediato o significado da torrente de palavras que dele saía.
Quando finalmente tracei o quadro, já estavas a meu lado, de lágrimas nos olhos.
Parte das nossas memórias ardeu nesse dia.
Às vezes tenho as minhas teimas com um velho amigo. A propósito da confusão entre actividade do corpo, desporto e competição. O homem é formado na área e tem lá os seus conceitos.
Parece acima de tudo que a palavra desporto é a que mais problemas levanta.
Quando eu lhe falo em fato e gravata como traje sport, ele, que é ainda novo, franze a testa.
E quando lhe digo que a palavra desporto sofreu uma evolução semântica acentuada e que designa hoje algo completamente diferente do que designava um século atrás, ele até aceita o argumento.
Não faço ideia (alguém faz?) do que é que esteve por detrás da primitiva ideia olímpica.
Mas estou mais inclinado para um peso maior do factor competição do que do factor desportivo na acepção antiga (mas moderna) de actividade lúdica.
Na Era Moderna, fica-se com a ideia mais ou menos ingénua de que a intenção era juntar os povos do mundo, pô-los a competir de forma pacífica e celebrada e ver qual é mais rápido, mais forte, qual chega mais alto.
Tanto se tratou de povos que mais tarde até se imortalizaram os cinco continentes com cores simbólicas.
É sabido que a História já se tinha encarregado de misturar as cores. Fê-lo desde sempre, separando e misturando. Não há nisso qualquer novidade. De umas vezes em episódios trágicos, de outras de forma mais pacífica e tolerada.
Mas ainda assim, numa época em que as fronteiras eram riscadas a lápis em cima de uma mesa, se pretendia que a cada território entre traços, novos ou velhos, mais rectilíneos ou mais naturais, de festos e talvegues, correspondesse uma certa representação.
Hoje, não é disso que se trata.
Independentemente de trajectos particulares, o que se verifica é uma venda de lugares num certame altamente voltado para o lucro.
Oferecem-se vagas como nas empresas. Há um lugar vago aqui, outro ali, troca-se de camisola e já está.
Não teço considerações valorativas em relação a isso.
Há muito que aquilo a que hoje se chama desporto está sujeito a essa lei. Clubes de bairro, de cidade, selecções nacionais há muito que não representam coisa alguma. Isso é um facto. Se é bom ou se é mau, fica ao juízo de cada um.
Nestas coisas, procura-se ver sempre os melhores. Se essas vagas não estão preenchidas e se alguém com talento as preenche, nada contra. Mas então é preciso rever o significado deste encontro. Que não será de povos, mas de campeões.
O pacote chegou pelo correio. Meio amarrotado, gordo e carimbado.
As folhas A4 vinham dobradas ao meio, como se a pressa tivesse impedido de acomodar de outra forma o conteúdo.
A primeira coisa que me chamou a atenção foi o gráfico. Uma banda cinzenta (seria grisé?) sinusoidal com limites superior e inferior a traço preto de 0,35 mm.
O homem apareceu quando eu analisava o pedido. Estranhei aquela bizarria de não ser ele próprio o portador da coisa. Explicou-me que calculara mal o tempo que a coisa demoraria na malaposta. Esperava que eu já tivesse os dados naquela altura.
Explicou-me então o que queria, dispensando-me da leitura do abstract.
Ao contrário do que seria de esperar, nenhum dos circunstantes se detinha na nossa conversa em inglês. Nem sequer nos miravam.
O Manel trouxe os cafés e tão pouco deitou o rabo do olho para as folhas.
O.K.. Era então medir a duração do dia. Não me ocorreu perguntar-lhe com que instrumento o faria. Convencido estava de que ele mo forneceria mais tarde.
Percebi finalmente que a agitação dele se prendia com o facto de aqueles serem os últimos resultados de que necessitava, para expôr as coisas e mandar para os árbitros, antes que a outra equipa o fizesse. Deu-me a entender que eram nórdicos.
Quando trocámos o último e-mail, já só havia uma questão para discutir.
Se ele aceitava "The Café do Manel Ice Age" ou se insistia na versão totalmente inglesa que me parecia disparatada e da qual já nem me lembro.
Aceitou.
imagem adaptada de por MCV às 19:26 de 23 agosto 2004
Azul marinho
As conversas nocturnas têm destas coisas.
Dos motores de rabeta (não, não é isso - são fora de borda, mesmo) aos petiscos regionais, tocam de tudo.
Essa do azul marinho surpreendeu-me.
Não é que não haja já vasta teorização sobre o assunto. Mas a comida de cor azul é sempre um mistério.
Sabemos que há uns frutos mais ou menos a descambar para o azul. Assim de peixes ou mariscos, também se pode dizer o mesmo. Mas azul marinho...
Por alguma razão, o azul não entra pela boca. Ou porque não há nada que valha a pena ou porque os olhos nesse caso são menores do que a barriga, quem sabe se alerta para eventuais perigos. Mas isso também se diz das bagas vermelhas e nem por isso se deixam de comer.
Azul marinho como nome de iguaria, não promete muito. Lá fui ver a foto. Azul? Onde? Um pratinho de praia com óptimo aspecto.
Depois, fiquei a saber que preparada numa panela de ferro e em determinadas condições, a banana verde dá ao molho um tom azul sim.
Lá fiquei eu com vontade de provar. A minha ignorância era total na banda do azul.