É curioso que, no meio de tanto disparate produzido a respeito do "E se fosse cá?", ninguém se tenha lembrado da grande onda que matou uns quantos pescadores na praia de Santo André, junto à lagoa, há umas boas dezenas de anos.
Não consigo encontrar nada a respeito, não me lembro em que ano foi, mas sei que aconteceu.
Não sei que tipo de onda foi, mas soube-se na época que não se tratava dos habituais acidentes que infelizmente ocorrem com pescadores mais temerários e com mal alteroso.
Estes, ao que me lembro, estavam na praia no amanho das artes, não à pesca.
Suponho que estará bem gravada na memória da gente da zona.
Conhecia bem os cantos ao casarão. Visto a aglomeração ser grande pelas salas abertas, escondi-me, bicho do mato, numa sala pequena, do lado do largo.
Homens nas traseiras, carne de porco no quintal, vinho na cozinha.
Senhoras na frente, entre bolos e canapés.
E a miudagem, saltando entre os grelhados, os doces e o jogo da calha.
Mas naquela altura, escondi-me. Era às escondidas.
Encarei com a fruteira de loiça que talvez nunca tivesse visto. Abri uma espécie de tampa e o objecto desfez-se ante a minha pouca habilidade manual. Gomos de porcelana que deviam ter-se apenas com a tampa colocada, desvairaram a cair por sobre a madeira do louceiro.
Aflito, tentei reconstruir o instável puzzle e, assim que o consegui, bem ou mal, raspei-me.
No recanto das escadas que davam para o grande pátio, consegui dissimular-me aos olhos do buscante.
Foi então que ouvi o estrondo.
Tremendo.
Embora tivesse achado o som estupendo demais para a fragmentação da fruteira, imaginava já os pedaços no chão e o castigo que se seguia.
Os gritos que se sucederam é que já não eram a propósito. Por que é que havia alguém de gritar tão alto por causa de uma peça de loiça?
Quando vi a correria, espreitei do varandim sobre o portão. Lá em baixo, no largo, juntavam-se dezenas de pessoas. No meio delas, duas senhoras estavam caídas. A grade da varanda, por baixo delas.
Não, na grade da varanda eu não tinha mexido.
"Ainda me divido entre os calendários agrícola e civil. Mesmo que as ligações ao campo se limitem hoje a presenças espaçadas.
E, por isso, vejo os anos terminarem na época balnear. Quando ela existe.
Quando não acontece, a sensação é a de emendar anos em anos, sem que 31 de Dezembro seja mais do que fim de mês.
Poucos anos passei sem molhar os pés. Mas neste século, só uma vez mergulhei nas águas do Atlântico. Com muita pena minha.
Estou portanto quase em ano seguido desde o verão de 2000." - escrevi isto aqui em Maio passado.
Podia ser em Garvão, em Pinhel, em Cacela Velha, no Sanguinhal, em Almofala, no Sabugal, em Angeja, nos Pitões das Júnias, em Barrancos, em Vila Nova de Milfontes, em Marmelete, no Terreiro das Bruxas, em Coja, em Valhelhas, em Proença-a-Nova.
Podia ser em qualquer desses lados ou em qualquer outro que nos agradasse.
Parar o carro e escutar contigo os sons do Ano Novo, batuques, foguetes, tiros, o que fosse.
Como fizemos certa vez em São Martinho do Porto.
Como fizemos muitas vezes em muitos outros locais, sem que fosse Dezembro ou Janeiro.
E agora, és tu que dizes - passaram os anos, e agora?
Agora? Agora é tarde!
A todos os que consideram esta próxima meia-noite especial, mais do que passar de um Dezembro para um Janeiro - sempre tão apartados no tradicional JFMAMJJASOND, pois que o próximo ano cumpra os vossos desejos.
Uma das coisas que me atormenta é o percurso que certas ideias infantis fazem em determinados meios onde seria esperada a sua reflexão (no sentido óptico).
Este ano, há algumas - sempre as mesmas é certo - que merecem destaque.
A sempiterna obsessão com a água, com a sua existência alhures, de forma a esperar-se que tenha havido, haja ou venha a haver vida. Como se não fosse possível imaginarmos formas de vida independentes da água.
E mais uma que se repete - a questão da existência ou não de Deus, face a catástrofes como esta dos últimos dias. Nem merece comentário.
E outra igualmente recorrente, embora mais nova, que se prende com a questão da existência ou não de uma alma, face à futura mais do que provável clonagem humana.
O grande problema de muitos linguistas, entre outros que apelidam de ciência os estudos que desenvolvem com base no homem e nas suas particularidades, é não perceberem que o seu campo de estudo evolui com base no erro e não no acerto (ainda que o acerto humano seja matéria a escalpelar), quando não com base nas modas.
Não faltam hoje, como no passado, duas versões para o mesmo nome.
Socorro-me aqui, como em muitas outras ocasiões, das palavras do intelectual de esquerda que já aqui citei, proferidas nos já longínquos anos setenta:
"Já não se diz Mao Tsé Tung. Agora é Mao Zedong que se diz." - e acompanhava esta sentença de uma longa série de argumentos.
Dizem que desta terra co as possantes
Ondas o mar, entrando, dividiu
A nobre ilha Samatra, que já d'antes
Juntas ambas a gente antiga viu.
Quersoneso foi dita; e das prestantes
Veias d'ouro que a terra produziu,
Áurea por epiteto lhe ajuntaram;
Alguns que fosse Ofir imaginaram.
Luís Vaz de Camões, Lusíadas, X:124 por MCV às 13:59 de 28 dezembro 2004
Terceira fila
Todos os dias há problemas menores para resolver. E são esses que nos causam o aborrecimento.
Que os grandes problemas não suscitam pequenas sensações.
Assim sendo ou não, detive-me hoje na espinhosa tarefa de arrumar livros.
Não há nada que mais me aborreça, em se tratando de livros, do que ter que dispô-los em fila dupla.
Pois hoje fui mais longe. Vi-me compelido a distribuí-los em três filas. Claro que o resultado me aborrece.
Restrições espaciais, má escolha do mobiliário ou a síndrome do burro carregado de livros.