Desde um certo dia, à tardinha, que o homem inventa mitos.
Maravilhas.
Um dia saberemos ou não qual o efeito do convencimento, da sugestão, nos fenómenos biológicos.
Vendedores de sonhos sempre os houve, desde essa tarde.
A ciência, de certa forma, nasceu dessa necessidade de criação de maravilhas, de sonhos.
A ciência mais do que a técnica, que essa sempre parece mais ligada à resolução dos problemas comezinhos.
A ciência acabou por cair em si e largou os mitos, se é que os largou.
Mas ambos permanecem complementares, hoje em campos diametralmente opostos.
Pelo meio, há uma nuvem de poeira.
Onde têm lugar as mistificações.
Os novos vendedores de banha da cobra têm o verbo fácil e claro, tal com os seus antepassados.
Dividem-se em duas sub-espécies.
Os que acreditam no que dizem e os que sabem muito bem como enganar os outros.
Nem sempre é fácil destrinçar uns de outros.
Vem-me isto sempre à cabeça quando ouço certos teóricos da economia, certos gurus do marketing, certos críticos de arte, certos analistas da política, o que fôr.
É uma sopa de palavras e de entoações tão cheia de certezas, tão curiosa na forma como se tiram conclusões sem base alguma, tão interessante no método, tão capaz de admitir uma afirmação e o seu contrário, sem o mínimo estrago à estrutura das ideias, que me maravilha.
Fico ali parado a ouvi-los.
A Feira de Castro é já no próximo domingo.
Mesmo que lá vá, tenho quase a certeza de que não encontro ninguém que se equipare a estes pregadores.
Nem o homem do lenço no microfone que oferece mais umas almofadas a quem comprar o belíssimo faqueiro. Por duas notas de 20? Não. Uma nota de 10 e outra de 5.
Mas como diria alguém, este é muito mais genuíno.
Mostrei-lhe a fracção do bloco de estampilhas fiscais que acabara de comprar.
Aplicou a vista e distinguiu a inscrição na moldura.
À minha pergunta capciosa e oportunista, respondeu com um "Es-tú-pido*!" dito a correr.
Agradeci a disponibilidade e a ironia do tipógrafo, que nunca terá imaginado que uma coincidência de nomes poderia dar pano para mangas. Mesmo sem saber se haveria por trás da singela inscrição mais do que uma inofensiva brincadeira.
* se repararem bem, e como já aqui de resto referi, as duas últimas sílabas são ditas de uma vez.
A insatisfação é natural. É ela que faz mover as coisas. É um ímpeto lá do dentro da vida.
É eterna, tanto quanto a podemos entrever nos relatos que conhecemos.
Se não existisse, não estávamos aqui todos a escrever linhas, à espera que nos leiam.
Andássemos todos muito satisfeitinhos e tudo parava. Nem os comboios seriam objecto do tal movimento residual que nos prendesse o olhar.
É bom que se clame, é bom que se proteste, é bom que se caminhe. Não é bom, é inevitável.
A energia acumula-se e dissipa-se, os ciclos são assim mesmo, tanto quanto nos parece que sabemos.
Quando forem de mais os gritos, os protestos, a coisa acalma de alguma forma. Por cansaço ou por catástrofe.
Se a observação das coisas nos ensinou algo, esse algo é que não devemos esperar coisas novas. Apenas formas diferentes.
Hoje, fala-se muito de liberdade.
Fala-se muito de pressões, de constrangimentos.
Confunde-se, às vezes, com licença.
Confunde-se, às vezes, com a possibilidade de tudo dizer e fazer.
Posso dizer que sou, em certos aspectos, um privilegiado.
Não tenho que cumprir ordens, aceder a desejos, fazer favores, pedi-los a outrem.
Mas será que não?
O facto de não ter chefes ou patrões, clientes, no sentido regular do termo, disciplina a que me submeter, partidária ou outra, carreira a construir, metas a atingir, faz de mim livre?
Provavelmente, dirão que sim.
A minha liberdade é o que eu fizer com ela.
Escrevo aqui. Limitei a minha liberdade de comentar em troca de manter o anonimato.
Foi um negócio que fiz comigo mesmo. Em nome de uma coisa qualquer chamada ética, dignidade, consciência, qualquer coisa que vos pareça. Ou não. Ou apenas do não me chateiem, comodista e associal.
Outros negócios faço com os meus botões, preservando sempre a liberdade de não ter liberdade.
É que ela, a liberdade, não é de facto um valor absoluto.
E se não o é, para mim, que reconheço ter poucas ou nenhumas razões para dela abdicar, o que será para quem tem, inevitavelmente, que se submeter a estas ou aquelas circunstâncias redutoras?
Uma ilusão? Talvez não passe disso mesmo.
Às vezes digo, e que me perdoem os mais terra-a-terra, que liberdade seria poder ter a possibilidade de me apaixonar por todas essas mulheres extraordinárias que existiram, século após século, desde que por aqui andamos. Ou por aquelas que hão-de vir.
Mas estou preso aqui, nestes dois séculos em que a minha vida decorreu e decorrerá, nada posso fazer a esse respeito.
Limitei-me assim às coetâneas. E procurei não fazer disso uma insatisfação permanente.
E posso dizer isto? Posso dizer uma coisa tão disparatada quando o mundo precisa de soluções para problemas gravíssimos?
Se calhar, não devia. Mas a verdade é que o mundo anda no tempo e permite novas formas à matéria velha, a partir da combinação de todas as coisas.
Não há nenhuma vontade que, sozinha, mude seja o que fôr.
Mas todas em conjunto, desde as mais disparatadas às mais consequentes, lá fazem a sopa.
E cada um puxa a brasa à sua sardinha.
Ou não será assim?
P.S. - Quando eu penso mais um bocadinho, chego sempre à mesma interrogação a que outros já chegaram: Dizer coisas? Para quê? O único relógio que dá as exactas horas é o que está parado. E fá-lo duas vezes ao dia, ao contrário de todos os outros, que sempre se afastam da hora certa.
Parece que é, afinal, o que nos trouxe aqui.
Descontando o facto de o mundo ter dado saltos de cada vez que alguém se lembra de inventar qualquer coisa mais estranha, mesmo sem seguir as pegadas de outrem.
Mas o exemplo, que eu não sei se vale mais do que mil palavras, o exemplo contemplado de baixo para cima, junto às saias da mãe ou às calças do pai, decerto nos proveu de competências para voar, mais alto ou mais rasteiro.
Z. era um excessivo. Em tudo. Nas palavras, nos gestos, nas atitudes, na amizade.
Convocava-nos por carta registada para comparecermos na estação, já alta a noite, para o recebermos no seu regresso triunfante de terras minhotas. Acrescentava em post scriptum que, provavelmente, se casaria com o novo amor.
Soube-se uns dias depois que as vizinhas quase chamaram a polícia, depois de o terem visto nu na varanda, quando ele pensava que às quatro da manhã, estava tudo a dormir.
Soube-se também que o vizinho de cima se pusera, contra a vontade da esposa, de ouvido à escuta, encostado aos tacos da sala, gargalhando com as nossas invenções.
Soube-se isto, sem que se soubesse se era assim ou se não era, quando uma brigada de boa vontade se dispôs a limpar a casa ao homem.
Já refeitos da esbórnia, uns dias depois, enquanto esperávamos que ele desencantasse mais uma garrafa de verde para acompanhar com umas conservas, vimo-lo chegar, de olho brilhante e desabafar:
"O meu pai também não é nenhum santo!"
Esta afirmação, para nós que conhecíamos o pai dele desde os bancos da escola, caiu assim um bocado como uma desculpa esfarrapada e pouco consistente.
Foi então que ele revelou a descoberta que fizera.
E lá estava, elegantemente trajado e acompanhado de uns amigos, em plena confraternização.
Nada na foto punha em causa a idoneidade do senhor.
Nada, não.
Havia o pormenor da sardinha a mostrar-se no bolso do lenço.
H.E.L.imagem da DGEMN
Nem Puto Charilas, nem Cara Linda, nem Moisés, nem Mal-Disposta.
Temo que nenhum tenha escapado.
Talvez que um deles, qualquer que seja, o tenha conseguido e pense agora, se é que pensa, o mesmo de mim.
Passou uma vida, desde essa época.
Entre as futeboladas no átrio, com a porta do elevador como baliza e as encapotadas disputas pelas atenções da cara mais linda, ainda havia tempo para sonhar (ó, se havia!) com a libertação.
Mas de tudo isso, o que mais vem à lembrança são as explorações que me deixavam conduzir pelo edifício.
Um castelo encantado, cheio de corredores escuros, luzes a piscar, gente falando baixinho, odores de éter, guarda-ventos, gemidos, silêncios. Era por esses corredores que a expedição seguia, de pijama. Evitando sempre ser vista.
Admira-me hoje que jamais tenhamos sido interceptados. Escolhíamos a hora parda do lusco-fusco e com toda a certeza, colhíamos o beneplácito de enfermeiras e ajudantes. Crianças em fim de vida, deixá-las ir - é isso que ficou. Essa sentença nunca proferida mas adivinhada na facilidade com que nos esgueirávamos pelas escadas, tomávamos elevadores, cruzávamos o hospital de ponta a ponta.
02 - era ver quem se atrevia a sair do elevador. Tudo escuro.
Nenhum de nós afinal imaginava ir ali parar.
por MCV às 02:33 de 10 outubro 2004