Se o tabaco prejudica a saúde, e poucos ou nenhuns duvidam que assim seja, porque é que, do ponto de vista do coleccionador, se podem encontrar actualmente 28 diferentes embalagens do tradicional SG Filtro?
O mesmo se aplicará, suponho, a todas as outras marcas e modelos.
São duas mensagens diferentes de um dos lados do maço e catorze (ou quatorze) do outro.
Se alguém descobriu mais, faça o favor de dizer.
Que a política é um exercício de prestidigitação parece não restarem grandes dúvidas.
Depois dos tempos da força bruta, da repressão, disto e daquilo, chegamos à idade da representação.
Os actores são quase todos maus. Os lado esquerdo e os do lado direito do palco. Eles lá se colocaram nessas posições relativas, muitas vezes sem perceberem como nem porquê.
O público é o que é.
Uns batem palmas, outros assobiam, alguns pateiam, poucos atiram ovos.
Os actores falam entre si num dialecto estranho. Ninguém os entende. Nem os esclarecidos sentados nos fauteuils de orquestra, nem os deserdados das galerias.
Julgam convencer a audiência de que quem pagou o palco, as vestes, a música, não se encontra ali. Na realidade o dinheiro dos bilhetes foi muito bem empregue. Todo para instituições sociais.
Saindo da sala, depois do espectáculo, ainda ressoam as palavras.
O dinheirinho com que se faz a festa não é vosso. Caiu do céu.
Porque é que será que o dinheiro esbanjado pelas câmaras municipais, pelas empresas públicas e por outras entidades que sobrevivem com o dinheiro que alguns de nós entregam aos cofres do estado, teima em não dizer de onde vem?
Já com mais de trinta anos de atraso, mas lá vai.
Minha senhora:
Apesar dos boatos que fizemos correr em devido tempo, mercê das nossas técnicas de telefonia baseadas na ampliação jornalística propriamente dita. Sim, era com jornais em forma de cone que amplificávamos os nossos comunicados marginais. Sim, marginais, porque o fazíamos quase sempre na estrada da praia. Mas digo, apesar disso nunca foi proibido fazer curoché na praia. Muito o menos o foi na esplanada do Habimar, embora saibamos todos que não era do agrado da gerência.
Foi assim em vão o seu receio, em boa hora transmitido a suas amigas e depois segredado aos nossos ouvidos cúmplices. Cúmplices e autores desse falso alarme.
J. teve sempre uma capacidade de previsão acima da média.
Não se tratava de previsões económicas, meteorológicas ou dos habituais prognósticos da bola, tratava-se de dormir descansado.
E suportava até ao limite a irritação dos outros, como bom condutor de homens quando tinha a certeza de que estava certo.
Como daquela vez em que, de férias, com o irmão e com o melhor amigo, os fez dar voltas e voltas até estacionar o carro junto a um prédio em obras.
Aqui poderemos dormir descansados.
Os outros já quase nem respondiam, mas ainda sorriram e largaram um desconfiado huuum, ao pé de uma obra....
Que não, que era domingo e que o sol só bateria por ali, lá para a tarde. Longe da estrada, sem ruído. E assim foi, só acordaram quando as costas já não podiam mais.
Estava tão treinado nas situações, mesmo a escolher os lugares para pernoita ao relento, que qualquer sinal que lhe indicasse a perturbação do descanso era identificado e analizado. Deixassem-no dormir em paz.
De vez em quando cometia imprudências. Poucas é certo. Mas houve aquela vez em que alugou a costumeira casa algarvia pelo telefone e ao chegar avisou logo a mulher: Amanhã vamos à procura de uma casa em Espanha. Depois virou o olhar para a betoneira escondida atrás das figueiras.
Havia ainda a recordação mais remota de um Domingo de Ramos na velha cidade forte e fria (os outros efes que se acusem...) quando os pais lhe destinaram um quarto ao lado dos sinos da Igreja da Misericórdia.
Hoje J. telefonou-me.
Acordou com berbequins, rebarbadoras, martelos eléctricos ao lado da cama. Está pois à beira sabem todos do quê...
Há uns anos esta manchete apareceu num jornal.
Não se tratava de climinha. Ou de qualquer liberdade poética. Era o clima mesmo.
Agora, ficamos a saber que um terço da costa portuguesa está a ser destruída.
Eu cá estou em dificuldades para enquadrar estas duas afirmações.
Ainda não percebi se são contraditórias, se são relacionadas do tipo causa-efeito ou vice-versa.
Mas confesso que me preocupo.
A costa a ser destruída sem que eu veja por lá as bondosas, as catrapilas, dá-me que pensar.
Quem andará a fazer tal maldade?
Falando a sério.
A linha de costa está a recuar? Receio que haja pouco a fazer nesse capítulo.
Estas coisas não se medem aos palmos, nem em séculos.
Avanços e recuos acontecem. É natural que as barragens impeçam os depósitos sedimentares nas zonas estuárias, é natural que o aproveitamento das areias favoreça o avanço das águas.
Mas o problema está muito acima desses aspectos. São ciclos de uma grandeza que nos escapa e forças a que não nos podemos opôr com eficácia.
Podemos fazer alguma coisinha? Ah sim. Os holandeses fazem-no há muito. Mas nem sempre as coisas são parelhas aqui e ali.
E não ajuda nada ouvir tanto disparate a propósito. Mas isso também é habitual. Forças cuja grandeza nos impede de as combater.
Há os revoltados. Ainda os hei-de ouvir clamar contra os movimentos tectónicos e a deriva dos continentes. Talvez reivindiquem indemnizações por nos terem separado da América. Ou talvez não.
A imagem ilustrativa é do IM e apenas nos diz que os deuses parecem ter identificado os dois pólos do nosso país. Não bradem muito alto que eles andem aí.
Ah, e a importância relativa de cada um... será que os deuses vão à bola connosco?
Vinte anos depois, o caneco tá à mão. Falta dobrar o FCP. por MCV às 23:23 de 18 maio 2004
Cães metálicos
Cães metálicos
Esculpidos por romenos
Bailam em telhados
Que são varandas
Sobre cores
Cães metálicos
E negros
Juntos em matilha
Tragam cobras
Que lhes disputam
A língua
Cães metálicos
E romenos
Em pedestais de prata
Sobre que cores
Mar de morte
De cães e víboras
De raiva e esgana
Cães metálicos
De cuspo vivo
Nas mandíbulas
Cães rosnando em ferro
Sobre estátuas
O habitual portinhol com las chicas de la tuna.
Pouco antes fora a velha que pedia cocáculas e era aragonesa, não pensem.
Qualquer coisa como tiens la certeza que es esta la boîte?
Não me safo em castelhano.
Ela dizia que sim e ainda lamentava o reloj que tinha perdido algures.
O porteiro é que não estava de modas. Era uma festa privada. Não podia ser nada, mas não me peçam que retroverta a frase.
Qualquer coisa o fez mudar de ideias. Entrámos pois.
Estava farto de ver nas ruas os cartazes da peça em exibição en el Teatro del Mercado. Traduzi as fotos para a cena nacional, deviam ser os nomes que a gente sabe...
Como não sou muito de teatros, não conhecia os figurões.
Mas depois de descer a escada, já estava em casa.
Os cartazes todos ali em carne, osso e fato de noite. Um bocadinho para o sobrelotado, o porteiro lá sabia o que fazia.
Mas era ali a combinação. Lá estava o moço agarrado à sua espanhola, irmã da minha.
Bailámos, pois.
Na confusão das luzes, já foi tarde que o homem acordou:
Caramba, tenho que comprar as !Holas! todas no quiosque em frente à minha sogra!
É o que faz separarmo-nos das raízes.
Viver num exílio anónimo de lugares para estacionar e compras de supermercado.
Nada de escolher a sombra do prédio em frente ou comprar alfaces no lugar da curva.
Nada de enfrentar a fila de cumprimentos para tomar posse de um café.
Nada de casas de tias, bolos na mesa.
Nada de tascas com facas cortando nacos de presunto e falando de porcos.
Quando o telefone toca, há sempre uma lista de mortos. Massacres gota-a-gota que nos chegam de enxurrada.
Dizem que os cheiros despoletam recordações. Claro.
Também as visões, os sons, os paladares. Talvez o tacto seja o parente pobre. Talvez não. A pele transporta-nos às vezes lá para trás.
Mas os cheiros, sim. Claro.
Anos a fio, aquele perfume das areias. Eu sabia-o. Pressentia-o, sempre naquele local. Talvez que em outros também assim fosse. Mas só ali me envolvia, como desenho animado transportado numa nuvem de aromas.
E sempre às escuras, sempre nada sabendo. Apenas envolvido no aroma, como se fosse parte indefinida e indefinível do local.
O segredo só foi quebrado décadas depois do primeiro contacto.
Tinhas que ter a mania das plantas, tinhas que me obrigar a parar no Caramulo, em Moncorvo, em Monchique, em Brinches, no Cercal, em Vila Franca das Naves ou no Beliche.
Naquele dia, tive que ficar com os pés a escaldar na areia quente. Mas valeu a pena.
Ainda não sei como se chama a plantinha.
por MCV às 14:08
Sobressalto
Ia embicado às bóias, bolas, postais e jornais estrangeiros.
Como sempre, na avidez do jornal de sábado, último hábito informativo que se permitia em férias.
O companheiro de ressaca ia calado, talvez magicando numa solução frugal para o jantar. Caldeira ainda quente.
Quando a voz chamou, os dois pararam e entreolharam-se, tentando reconhecer quem chamava e a qual deles.
É a ti - disse o companheiro.
Eh lá! Uma gaiatona. O que é que ela quererá?
Tem juízo, pá. Não vês que é uma miúda? Para aí com uns treze anos!
Atravessou a estrada na direcção da carrinha. Agora via que era uma miúda novinha. Uma carinha encantadora e sorridente.
Então quando é que volta a cantar lá no bar?
Hmmmmm. Lá no bar?
Sim, naquele da piscina. Gostei muito de o ouvir.
Ah, obrigado. Pois é, um dia destes... quem sabe?
Vá. Vá, que eu gostei de o ouvir e aos seus amigos.
Obrigado.
Olha lá, Zé, tu deste por mais alguém lá no bar ontem à noite?
Eu? Achas que sim? A gente até perdeu o outro no caminho...
É que a miúda diz que gostou de me ouvir...
Olha lá, o teu tio nunca teve uma Peugeot 504? Aqui há uns vinte anos?
Não.
Nunca andaste numa nesses anos de Algarve? Ninguém conhecido que tivesse uma?
Não me lembro. Acho que não.
E a um bar onde havia fado vadio, junto a uma piscina? Nunca foste?
Não. Porquê?
Por nada. Vamos dormir. É quase dia.