2000 anos depoisNunca convivi bem com as explicações históricas. Que estabelecem causas, efeitos e a forma como estes se relacionam com outras causas e outros efeitos.
Todavia, ocorre-me que esta guerra tem episódios com 2000 anos e ainda não foi ganha por nenhuma das partes.
Haverá, terá havido uma guerra definitivamente ganha?
por MCV às 12:27 de 26 julho 2006 
O compositor emérito ou a quase morte de outro artista[Com o razoável conhecimento que tenho da parte de Almeida que fica extra-muros, não há meio de conseguir encaixar lá aquela carreira que mais parece a de Pinhel e menos a de Trancoso. E o respectivo hotel. Para não falar da distância a que fica a Estação C.F. de Pinhel.]
Outra vez o
Lopes.
Com aquele vozeirão que o caracteriza, antes sequer de me cumprimentar: A gaja tá farta de perguntar por ti!
A gaja? Qual gaja, pá?
A jornalista, pá. Começou a falar-me que conhecia cá um tipo, começou a dar-me pistas e eu, de repente, vi que eras tu. Perguntei-lhe o nome e assim que ela o disse, comecei aos gritos. Ela não se assustou, vê lá tu. Ficou tão entusiasmada que me obrigou a ligar-te logo. Tens sempre a merda do telefone desligado. Nem sei para que queres tu dois telemóveis...
Essa mulher está cá em Almeida? Aqui no hotel?
Sim, homem. Aqui no hotel.
Ouve lá, Lopes, e tu? O que é que andas aqui a fazer?
Tenho aqui uma obra. Estou aqui esta semana. Lembrei-me que é nesta altura do ano que costumas andar por estes lados, já te tinha tentado ligar antes de conhecer a F.. Mas ela não falou contigo? Vieste aqui por acaso?
Claro. Sabia lá eu que tu ou ela andavam por estas bandas. Ela atão...!
Porra! Ca ganda pontaria. Vai lá, pá, vai lá ver se ela está no hotel. Mas olha, preciso de ajuda esta noite para uma coisa lá na obra. Não te metas já debaixo das saias da moça.
Tá bem, pá. Arranja aí um sítio para um petisco que depois ajudo-te.
São seis horas. Às oito, estou no bar.
Entrei. Vinte e dois euros por noite, é tudo do que me lembro da conversa do recepcionista.
Disse-lhe que não valia a pena mostrar-me o quarto.
Dei com o bar por acaso. Apeteceu-me um café.
O homem estava entretidíssimo com uma mesa de mistura de sons. Só que não se ouvia um pio. Olhou-me de lado e com um ar mais do que entediado, lá acedeu a tirar uma bica.
O sítio era penumbroso. Acho que lhe ficava a matar. O ambiente e as fileiras de cursores coloridos que ele manuseava, numa espécie de deleite que eu não percebia de onde lhe vinha.
Saí.
Ouvi a voz do Lopes ao fundo das escadas.
E a voz dela em cima. Vinha a descer, de vestido cinzento azulado e ar descomposto.
Confesso que não percebi a fundo o objecto da estada dela naquelas paragens. Mostrou-me um quadro que pintava daquilo que se avistava de uma das duas janelas que o quarto tinha. Era a estação de caminho-de-ferro de Pinhel e as casas à volta. Disse-me que tinha passado uma vez o São João com os pais numa daquelas casas ao pé da estação. Que vira o mastro de uma daquelas janelas.
E eu que pensava que ela nunca tinha vindo a Portugal.
Esta noite não posso jantar contigo. O Lopes já me angariou para o ajudar na obra. Mas a partir de amanhã, sou teu valete.
Ela concordou. Disse que também tinha umas coisas para escrever e que assim aproveitava e as despachava.
Óptimo - disse eu.
Voltei ao escuso ambiente do compositor emérito no dia seguinte. Nem me prestou atenção, apenas se levantou, tirou o café e voltou para os cursores.
Foi a olhar para ele que fiz as contas ao dinheiro que ia gastar, por cada dia a mais que ali ficasse na estimável companhia. Até parece que via o recepcionista, na sua refinada caligrafia, a escrever por extenso vinte e dois euros.
O corre-corre tomara conta da casa. Havia gente para lá e para cá, decidindo isto, ajeitando aquilo.
Há muito que não me sentia um príncipe. Qualquer ordem que desse era prontamente atendida.
Alguém me dizia que o fato ficara deslumbrantemente novo. Que o homem era um mestre. Que cerzira todos os buracos da traça com uma maestria nunca vista e que, mais, acertara todas as medidas às minhas dimensões actuais.
Isto para não falar do pastiche que dera ao tecido. Dum novo-velho admirável.
Só vendo - dizia eu, embora, com tanto entusiasmo do outro, julgasse que seria mesmo assim.
O fato veio e de facto estava impecável.
Muito bem, já só falta a gravata. Tragam-me a MINHA gravata.
Claro que vieram cinco ou seis antes da tal. Mas apareceu.
Depois de terminado o atavio, disse para quem me escutava, antes que fossem buscar o Hudson côr de rato à garagem:
Vou a pé, para poder saudar o povo nas janelas.
Ela esperava-me na Casa do Povo. Casávamos na minha terra.
por MCV às 05:53 de 24 julho 2006 